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1945: no fim da Guerra, uma Linha de Rumo para o País

A guerra, esse monstro de que falava Vieira, tem sido minha aliada nesta campanha de mostrar aos portugueses o caminho da indústria, pelas dificuldades que trouxe à vida nacional; porque as dificuldades analisadas à posteriori ganham em evidência, embora a análise perca em oportunidade.
J. N. Ferreira Dias Jr., Linha de Rumo.
Notas de Economia Portuguesa,
Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945, p. 170

Comemora-se este ano o 60.º aniversário do final da II Guerra Mundial.

A Guerra constituiu um importante momento de viragem em Portugal, significando um marco indelével na história portuguesa do século XX como, de resto, nos demais países directa ou indirectamente afectados pelo conflito, e em geral na própria ordem internacional. Esse facto deve ser devidamente sublinhado à escala nacional, destacando, entre outros aspectos, a
medida em que conjuntura da Guerra, alterando o registo em que se vinha processando a actividade económica nacional, introduziu uma reorientação no rumo e no ritmo que deter minavam a condução económica do País.

Na verdade, embora a posição de neutralidade, Portugal sofreu os efeitos económicos propagados pela situação de beligerância, tendo sido obrigado a adoptar uma verdadeira “economia de guerra”. Situação que, demonstrando a forte dependência da economia nacional relativamente ao comércio externo (sobretudo em matéria de abastecimentos), denunciava o peso de um conjunto de vulnerabilidades estruturais que condicionavam a economia portuguesa, sobretudo no que respeitava à natureza e composição do seu tecido produtivo.

Essa situação suscitou numerosas reflexões e projectos que, por sua vez, propiciaram uma tomada de consciência dos limites impostos pelo fraco desempenho da produção nacional, revelando em especial as debilidades da sua malha industrial, e abriu caminho à discussão e aprovação de um programa de modernização económica que encontrou a sua concretização no trabalho legislativo e na doutrinação do engenheiro Ferreira Dias. Foi das suas mãos que saíram as leis base da nossa industrialização e o livro que publicou em 1945 com o título Linha de Rumo.



Remodelação governamental, 1940. Ferreira Dias, Duarte Pacheco,
Costa Leite (Lumbrales) e Rafael Duque, ministro da Economia.
Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC.
José Nascimento Ferreira Dias Jr.,
Subsecretário de Estado do Comércio e da Indústria
entre 1940 e 1944.
Colecção particular.
Ferreira Dias, Duarte Pacheco, Óscar Carmona
no Instituto Superior Técnico em 1943.
Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC.

Recordemos, portanto, que, para além do fim da Guerra, se cumpre também este ano o 60.º aniversário da formulação de um projecto de industrialização e do traçado de um “rumo” para o País que Ferreira Dias protagonizou.

“Rumo” confrontado com a imagem da indústria portuguesa da época, e a compreensão de que o enriquecimento, a prosperidade, e até o crescimento, que caracterizara alguns sectores industriais durante a Guerra não terem significado processos de reapetrechamento ou modernização da produção industrial, nem terem resultado no aumento dos seus níveis de produtividade Por isso, a confissão de tristeza sentida a pensar na mediocridade da produção industrial portuguesa e a caracterização dramática do panorama da técnica e da economia portuguesas que Ferreira Dias, entre outros, deixou na Linha de Rumo... quando a Guerra terminou.

Engenheiro, defensor da industrialização, Subsecretário de Estado do Comércio e da Indústria (1940-1944), Ministro da Economia (1958-1962), Bastonário da Ordem dos Engenheiros (1945-1947), entre tantos outros cargos… José Nascimento Ferreira Dias, que desde há uns anos se vinha afirmando e destacando no quadro de um grupo de engenheiros apostados na defesa da modernização económica e técnica do País, foi chamado ao Governo durante a Guerra, para integrar a equipa que compunha o recém-criado Ministério da Economia.

Foi então que escreveu as duas leis que marcaram de forma decisiva o percurso da economia portuguesa nos anos seguintes.
A primeira a ser aprovada, a da Electrificação do País (lei n.º 2002, promulgada em 26 de Dezembro de 1944), foi imediatamente posta em execução, significando que a questão sucessivamente protelada da produção eléctrica encontrou finalmente um desfecho. Na proposta de apresentação da lei estavam bem claros os objectivos que a orientavam: a electrificação como uma condição fundamental para o processo de modernização/industrialização do País, o conceito de rede eléctrica nacional e o enunciado do princípio de que a produção de electricidade teria de ser de origem hidráulica, devendo as centrais térmicas reservar-se para funções complementares, nomeadamente durante o Verão, para aproveitar os carvões pobres de origem nacional.

A lei foi aprovada e promulgada estando já Ferreira Dias fora do Governo, mas a electrificação do País já estava em marcha.
A proposta que apontava e defendia um programa de industrialização do País, vencendo com dificuldade a complexa teia de resistências de natureza diversa que de forma mais ou menos evidente foram surgindo, foi aprovada no ano seguinte, em Março de 1945.


J. N. Ferreira Dias Jr., Linha de Rumo.
Notas de Economia Portuguesa (vol. I),
Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945.
Pela publicação de Linha de Rumo. Notas de Economia Portuguesa (vol. I),
Ferreira Dias recebeu em 1946, da mão de António Ferro,o prémio Anselmo de Andrade, patrocinado pelo SNI.
Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC.

Essa lei, n.º 2005, do Fomento e Reorganização Industrial, ficou a constituir a peça mais marcante e emblemática da ofensiva industrialista e o mais persistente projecto de industrialização adoptado pelo Estado Novo. A Guerra, de forma mais dramática do que qualquer outra ocasião propiciara, permitia provar que era tempo de edificar, através de um processo de industrialização, as fontes permanentes de criação de riqueza de que o país carecia.

O conceito de industrialização defendido por Ferreira Dias, e pela maioria dos chamados industrialistas da época, apontava para um processo global de transformação das estruturas produtivas de um País, para o qual, num quadro de progresso material, não existia alternativa, entendendo assim a industrialização como uma etapa por onde teriam de passar as sociedades de todos os países na sua marcha para o desenvolvimento.

É, em síntese, esse postulado que se encontra inscrito na apresentação da proposta que deu origem à lei n.º 2005, perpassando todo o seu articulado.

Na aposta do carácter vital da industrialização, e da sua imprescindibilidade, denuncia-se a ilegitimidade da especialização do País na produção de um número restrito de produtos e muito menos quando se pretende confinar essa especialização à agricultura; propõem-se como objectivos fundamentais a absorção de mão-de-obra, o aproveitamento dos recursos naturais, o
aproveitamento e alargamento do mercado interno, a promoção do equilíbrio da balança comercial, a criação de um tecido industrial interdependente, a promoção da instalação de um conjunto de novas indústrias-base (metalurgia do ferro, metalurgia do cobre, sulfato de amónio, nitratos e cianamida, celulose e, acrescentada posteriormente, álcool carburante). Em suma, tratava-se de lançar uma política de substituição de importações, comportando uma dupla componente, criação de novas indústrias e reorganização das existentes, no quadro de uma política económica nacionalista e autárcica.

O processo estava concebido para ser concretizado no médio e longo prazos, apoiando-se na intervenção directa do Estado (suprindo a timidez da iniciativa privada), apostando numa política de diversificação industrial assente nas referidas indústrias-base. O universo das novas indústrias elencadas por Ferreira Dias não era muito inovador relativamente às propostas
que num passado mais ou menos recente iam brotando da iniciativa privada e das sugestões de um vasto conjunto de observadores, críticos e analistas da vida económica portuguesa; além disso, parte delas, tinha até sido autorizada durante os anos da Guerra e, a prazo, acabaria por se concretizar. Nessa matéria, mais do que pelo enunciado das indústrias a criar e a confirmação do objectivo autárcico que lhe estava subjacente, a lei 2005 valeu pela síntese e, sobretudo, pelo discurso articulado que passou a envolver, estruturando e dando espessura à proposta e ao caminho da industrialização em ritmo acelerado que outros partilhavam e perfilhavam.

Bastante mais ousadas, e muito mais controversas, eram, todavia, as estratégias e as propostas avançadas no sentido de levar a cabo o trabalho de reorganização e concentração do tecido industrial existente, incluindo a eliminação de unidades ineficientes, e a sua combinação com as indústrias-base.

Foi aliás, sobretudo por isso, que contrariamente ao projecto de electrificação do País, a lei de fomento e reorganização industrial teve um grau de concretização francamente modesto.

Impôs-se, porém, como referência e sinal de mudança, simbolizando, mais do que significando de facto, uma viragem operada no quadro da política económica do Estado Novo em favor da industrialização.

A sua aprovação reveste-se de uma enorme carga simbólica, determinante no debate e na definição das estratégias que passaram a compor e a presidir aos destinos económicos do País. A lei 2005 passou a estar repetida e teimosamente presente em todos os debates e discussões que aconteceram nos anos seguintes.

Mas, por força dos condicionalismos, internos e externos, por subordinação às prioridades e orientações da política que comandava o País e das linhas que deviam guiar a economia, que não foi dada continuidade ao tom e ao ímpeto industrializador que inspirara a lei 2005. As queixas, do lado dos industrialistas, começando pelo próprio Ferreira Dias, tornaram-se de certa forma recorrentes. A concretização da lei ficou em grande parte por cumprir. A industrialização do País, essa miragem sonhada, teve de esperar ainda quase década e meia para se concretizar.

Maria Fernanda Rollo
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL

Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 87 - Maio/Junho de 2005

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