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Da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses à Ordem dos Engenheiros

A Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (AECP), primeira associação profissional de engenheiros portuguesa, foi, recordando o último artigo, criada em 1869, permanecendo activa até à constituição da Ordem dos Engenheiros em 1936.

Uma vez organizados em associação, os engenheiros empenharam-se no sentido da afirmação e reforço da sua identidade colectiva: assumindo-se como classe profissional dotada de uma competência específica e identificável, reivindicando o seu lugar na sociedade. Foi precisamente com o propósito de dar efectiva expressão à organização dos engenheiros como corpo e como classe, que a AECP se empenhou na revisão dos seus estatutos em Dezembro de 1917. Processo de actualização estatutária em que, pela primeira vez, se fez notar a intenção de dotar a Associação da missão de defesa de interesses de ordem laboral.1 Define-se como “engenheiro civil todo o indivíduo nacional ou estrangeiro, residente em território português, que possua o diploma de engenheiro em qualquer das especialidades em que se agrupam conhecimento que constituem a arte e a ciência da engenharia”, acrescentando-se que!os diplomas de engenheiro respeitavam aos passados por escolas de engenharia nacionais ou por escolas de engenharia estrangeiras acreditadas mundialmente. Esclarece-se também que, entre outros, é função da Associação “defender os interesses profissionais e materiais dos engenheiros portugueses sócios da Associação e que exerçam a sua profissão em território português, prestando-lhes todo o apoio necessário, quando se julgue útil aos interesses gerais da classe”. Ficava assim explicitamente anunciado o caminho que, trilhado, seria aprofundado nos anos seguintes, catapultando a Associação muito para lá da sua natureza e vocação originais, de natureza eminentemente científicas.

Nos anos seguintes, o objectivo da criação de uma Ordem dos Engenheiros foi ganhando expressão e adquirindo forma. Intenção a que não era estranha a questão da defesa do título de engenheiro, em torno da qual se intensificaram polémicas nesta conjuntura, designadamente a propósito da reorganização do Ministério do Comércio e Comunicações introduzida pelo Governo republicano em 19202 que os engenheiros da Associação consideraram ter sido ferido o prestígio da classe.3
Na verdade, essa reorganização não só implicava a redução dos lugares de quadro de engenharia civil no Ministério, como dava aos condutores de obras públicas, que não são diplomados, ou que o não são em escolas de engenharia, a designação de engenheiros auxiliares4. A partir dessa data a questão da defesa do título de engenheiro ganhou contornos de maior agressividade, decorrendo no contexto de um conflito aberto com o Grémio Técnico Português, e teve como efeito reforçar a ideia da urgência da criação de uma Ordem profissional.

Sucederam-se as reacções mais ou menos organizadas, os apontamentos, os artigos nas publicações afectas aos engenheiros, as representações aos poderes públicos, explicitamente divulgadas através do órgão da AECP, denunciando a invasão dos lugares de engenheiros por pseudo engenheiros5 acusando as circunstâncias em que se pode ser engenheiro auxiliar sem se ser engenheiro e que este substantivo junto à palavra auxiliar não corresponde a qualquer habilitação especial, mas somente a uma pura e simples benesse.6 O desfecho da contestação, indo ao encontro das reivindicações da AECP, que chegou a recorrer à convocação de uma greve em 1924, aconteceu em 1926, com a publicação do decreto n.º 11 988, que veio consagrar a exclusividade da atribuição do título de engenheiro a uma formação académica superior, atribuindo aos diplomados com cursos médios a designação de “agente técnico de engenharia”.

Entretanto, fechara-se um ciclo político. O golpe de 28 de Maio dava início a um período de Ditadura Militar, que havia de culminar, em 1933, com a institucionalização do Estado Novo, de matriz corporativa. Foi nesse contexto que, aproveitando a oportunidade que o momento político de certa forma oferecia, ganhou consistência a ideia de uma proposta industrializante para o País, em boa medida protagonizada por engenheiros, na convicção de que era chegado o momento de promover o arranque auto-sustentado da economia portuguesa, viabilizado pelo motor industrial.

Os engenheiros, cientes da sua força, da sua capacidade e competência, adoptaram então uma estratégia claramente ofensiva. Em termos gerais, procuraram concretizar as suas ideias, primeiro através de um explícito projecto de profissionalização e pela consolidação da defesa do título de engenheiro em que se enquadrava a criação da Ordem; logo depois, pela assunção de um protagonismo cada vez mais evidente no quadro da definição da política e da estratégia económica que o País deveria adoptar. As suas intervenções públicas eram cada vez mais visíveis, assumindo papéis na administração e no Governo, publicando artigos e manifestos... nos seus órgãos privilegiados (a Revista da AECP, a Técnica e a Revista de Engenharia da FEUP), ou através da organização de eventos, palestras, ciclos de conferências, mas onde avulta o I Congresso Nacional de Engenharia (1931).

Foi nesse tempo que se fez sentir de forma mais clara a insistência dos engenheiros no sentido da criação da sua Ordem. Aconteceu, assim, que a ideia foi gradualmente ganhando adeptos e forma. Uma vez encontrados o espírito, o tom e a estratégia, justificava-se a persistência em torno da regulamentação da sua actividade e na aspiração de institucionalizar uma organização profissional adequada aos tempos que então se viviam: em boa verdade, ainda se mantinha em aberto não só a questão institucional como a outra, da defesa do título, que o diploma de 1926 viera em parte resolver mas não erradicar.

Foram sobretudo os novos engenheiros aqueles que maior dinamismo imprimiram na condução dessas iniciativas; jovens engenheiros, muitos saídos do IST, parte dos que tinham animado a campanha da defesa do título que envolveu a agitação estudantil no IST no ano lectivo de 1924/25 que agora, no quadro da AECP, tomavam posição, agitavam as hostes, mobilizavam esforços e saíam a terreiro na reivindicação e defesa do lugar do engenheiro na sociedade moderna.7

Porém, os anos suceder-se-iam sem que os engenheiros vissem as suas aspirações concretizadas, nomeadamente a regulamentação da profissão e subsequente criação da Ordem dos Engenheiros. O impasse prolongou-se bastante para além das expectativas. Daí que, em 1934, a AECP, tenha resolvido, de forma unilateral e antecipando-se à indispensável acção do Governo, tomar a decisão de criar a Ordem dos Engenheiros.8

Manifestada a concordância quanto à constituição de uma Ordem sob a orgânica corporativa do Estado Novo, foi então preparado um projecto de estatuto9, ficando, por exposição dirigida ao subsecretário de Estado das Corporações, desde logo clara a posição da AECP: que não deverão fazer parte dessa Ordem senão os diplomados das especialidades professadas no Instituto Superior Técnico, na Faculdade Técnica da Universidade do Porto e na Escola Militar10.

Apontado ficou também o entendimento da AECP quanto ao que considerava distinguir a Ordem do Sindicato Nacional no quadro vulgar da orgânica corporativa: Enquanto o Sindicato tem por fim essencial a defesa dos interesses materiais dos que voluntariamente se associarem, à Ordem, se for criada, competirá, além disso, desempenhar uma função de natureza disciplinar, velando pela moralidade da profissão e impondo a obrigatoriedade de inscrição dos que estão em condições de ser sócios.

A resposta do Governo tardou, até porque requeria o parecer do Conselho Corporativo. Por fim, o decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 193411, regulamentando a Câmara Corporativa, indicava a solução encontrada e previa a representação da “Ordem dos Engenheiros” e dos “Sindicatos dos Engenheiros Agrónomos e Silvicultores”.

Finalmente, a publicação do decreto-lei n.º 27 288, de 24 de Novembro de 193612, postulava que as profissões livres se deveriam organizar num único sindicato nacional que os Sindicatos Nacionais dos Advogados, dos Médicos e dos Engenheiros possam adoptar a denominação de Ordens. Assim se dava satisfação à velha aspiração dos engenheiros da AECP. Os seus sócios transitariam agora, sem problemas de maior, para o novo organismo.13

Finalmente havia Ordem. A luta, para aqueles que sem descanso, durante mais de 20 anos, lutaram por ela, chegava ao fim com sucesso. O regozijo foi grande no interior da classe, sobretudo pelo respeito que o diploma demonstrava pelo estatuto da profissão de engenheiro. Alguns teriam preferido que o processo não se tivesse arrastado por tanto tempo e que a regra da grande organização dos engenheiros portugueses não tivesse ficado tão estreitamente vinculada à ideologia corporativa nem tão drasticamente submetida à disciplina política imposta pelo Estado Novo. Porém, a verdade é que o diploma que institui a Ordem dos Engenheiros vinha ao encontro de maior parte das reivindicações feitas ao longo de todo este complexo processo.


1 Estatutos da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses aprovados nas sessões da Assembleia Geral de 20 de Dezembro de 1917 e 27 de Janeiro de 1937, Papelaria Fernandes, Lisboa, 1950 e
“Estatutos”, in Revista de Obras Públicas e Minas, n.º 571/576, Julho/Dezembro de 1917, p. 123.
2 Decretos n.os 7 036 e 7 039 de 17 de Outubro de 1920.
3 “Representação ao Parlamento acerca da Reorganização do Ministério do Comércio e Comunicações”, in Revista de Obras Públicas e Minas, n.os 607 a 612, Julho a Dezembro de 1920, p. 127.
4 Idem, p. 131.
5 “Cópia da representação da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses ao Exmo. Sr. Ministro do Trabalho”, in Revista de Obras Públicas e Minas, n.º 625, Dezembro de 1923, p. 30.
6 Idem, p. 29. Ver, a propósito, a “Representação” dirigida ao Senado em 1924, publicada na Revista de Obras Públicas e Minas, n.º 631, Dezembro de 1924, p. 172-174.
7 Entre 1931 e 1934 mais de 70% dos novos sócios da AECP eram diplomados pelo IST.
8 “Vida Associativa”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 708, Junho de 1934, p. 243.
9 Projecto de Estatuto Profissional dos Engenheiros. Ordem dos Engenheiros, Lisboa, 1934.
10 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1934”, Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 717, Março de 1935, p. 119.
11 DG, I Série, n.º 279.
12 Suplemento ao DG, I Série, de 24 de Novembro de 1936.
13 Com a criação da Ordem, a AECP decidiu suspender as suas actividades, sendo formalmente extinta em 1956.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 116 – Março/Abril de 2010

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