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Em prol da electrificação do País II

 

  Fonte: EDP - Energias de Portugal

Em 1947 estava tudo em ordem para dar lugar à constituição da Companhia Nacional de Electricidade1, que contando com!um significativo apoio dos Estados Unidos da América2, teve como primeiro presidente Ferreira Dias, empossado já no tempo de Daniel Barbosa (Ministro da Economia entre 1947 e 1949). A CNE, polícia sinaleiro da electricidade portuguesa, como se lhe referia o seu mentor, tinha por objectivo o estabelecimento e a exploração de linhas de transporte e subestações destinadas ao fornecimento de energia eléctrica aos concessionários da grande distribuição ou aos consumidores cujo abastecimento directo se justifique nos termos da base XIII da Lei n.º 2002 [consideravam-se nomeadamente as indústrias electroquímicas, electrometalúrgicas, tracção eléctrica e grandes planos de rega3], bem como à interligação dos sistemas do Cávado e do Zêzere, entre si e com os sistemas existentes4. Concretizava-se assim a realização de mais uma peça, e importante, da construção da Rede Eléctrica Nacional (REN), o corolário lógico dos dois principais elementos da REN, ou seja, os  aproveitamentos do Zêzere e do Cávado.

Só a partir de então, embora a primeira referência legal a uma rede eléctrica nacional remontasse aos anos 20, é que se constituiu de facto a REN e se procurou implementar uma rede psimária com o significado de electrificação nacional5.


Eng. José Nascimento Fesreira Dias,
no Laboratório da Companhia Nacional de Electricidade

Sobreveio entretanto a crise, internacional e depois mais visivelmente nacional, o Plano Marshall, a participação de Portugal na Organização Europeia de Cooperação Económica e no European Recovery Plane, e, com tudo isso, a imposição de realizar e apresentar um programa de orientação e enquadramento para a economia do País que justificasse o recurso às verbas americanas, à cabeça do qual surgia como prioridade a prossecução da obra da electrificação em curso. Ultrapassadas vicissitudes de diversa natureza, Portugal foi contemplado na concessão das verbas Marshall, criando a oportunidade para inscrever as entidades em que estava depositada a responsabilidade de concretizar a electrificação do País como beneficiárias do programa de importações e, também, como projectos para efeito de aplicação dos fundos de contrapartida. A par desse processo decorreram vistorias e estudos promovidos pelos americanos, destinados, entre outras coisas, a testar a justeza da adjudicação de verbas do ERP aos projectos portugueses. Entretanto, o Governo português avançava com as primeiras propostas no quadro do programa americano de Assistência Técnica e Produtividade, inscrevendo o interesse de promover o desenvolvimento da bacia hidrográfica do Douro, de acordo com a escolha que fora feita no quadro da política energética perspectivada no plano director. Em Junho de 1950 os americanos apresentaram um relatório6 que veio a revelar--se de importância crucial para a prossecução da política de electrificação portuguesa, confirmando o interesse de alguns dos empreendimentos em curso, incluindo as realizações no campo da irrigação, e deixando recomendações que acabariam por conduzir à elaboração de estudos adicionais e, a partir desses, à profunda alteração dos projectos portugueses em termos de aproveitamento energético do Douro. Alteração que veio a constituir a principal consequência da participação de Portugal no Plano Marshall em matéria de estratégia e concretização do programa de electrificação do País. Para além disso, o sector energético também colheu benefícios em matéria de ajuda directa Marshall7 e, sobretudo, no campo da aplicação dos fundos de contrapartida8.

Anúncio Publicitário UEP (1945), na revista da Ordem dos Engenheiros

A execução do programa de electrificação foi um sucesso, manifestando resultados significativos num espaço de tempo consideravelmente curto. Passados seis anos, em 1951, ficaram concluídas quatro grandes realizações: os escalões de Castelo do Bode, no Zêzere (Janeiro); Venda Nova, no Rabagão com central sobre o Cávado (Junho); Pracana, no Ocreza; e Belver, no Tejo. Salvo este último, que só trabalhou em regime experimental e durante pouco tempo, os três primeiros aproveitamentos produziram 300 milhões de kWh, número correspondente a cerca de 50% da capacidade total de produção dos quatro empreendimentos citados:


 

Energia produtível

Energia produzida

Escalão

(× 106 kWh)

(× 106 kWh)

Castelo do Bode

300

207

Venda Nova

150

69

Pracana

30

-24

Belver

145

-

ADGSH, MOP, Relatório da Actividade do Ministério no Ano de 1951, Lisboa, 1952, (policopiado), p. 26.


Em virtude da entrada em funcionamento dessas centrais, o quadro da produção de energia alterou-se profundamente, espelhando os resultados da primazia conferida à produção hidroeléctrica:

Origem

1950

1951

Quantidade
(
× 106 kWh)

%

Quantidade
(
× 106 kWh)

%

Térmica

503

53,51

230

22,05

Hidráulica

437

46,49

813

77,95

Total

940

100

1.043

100


ADGSH, MOP, Relatório da Actividade do Ministério no Ano de 1951, Lisboa, 1952, (policopiado), p. 26.


Além do mais, como Lucena Ferreira apontou, Castelo de Bode e Venda Nova representam um importante salto, quantitativo e qualitativo, em relação a tudo o que tinha sido antes realizado no domínio da hidroelectricidade, quer pela complexidade dos projectos, quer pela dimensão das obras, requerendo conhecimentos e meios até então não utilizados9.


Barragem do Carrapatelo – aspecto geral do estaleiro
O esforço e as obras desenvolvidas, confirmando o empenho em produzir energia hidroeléctrica, materializou-se em barragens e centrais que paulatinamente começaram a pontuar os nossos rios, envolveu a participação de um assinalável corpo de profissionais portugueses e contou também com o apoio do entretanto criado Laboratório Nacional de Engenharia Civil, também ele beneficiário da aquisição de equipamentos realizada através da ajuda directa Marshall.

Retomando 1951, foi nesse ano que se lançaram mais dois grandes aproveitamentos: do Cabril, constituindo o segundo escalão do Zêzere, e de Salamonde, no Cávado, susceptíveis de aumentar a capacidade de produção de energia hidroeléctrica em 370 milhões de kWh.10 Importa ainda, no quadro das principais realizações ocorridas nos anos 50 em Portugal, no que respeita à construção e evolução do processo de "electrificação do País”, mencionar a constituição do Repartidor Nacional de Cargas em 1951, que geria cerca de 90% da produção energética nacional. Cumpria-lhe a coordenação e interligação da Rede Eléctrica Primária com o sector privado11.


Passados dois anos foi constituída a Hidro-Eléctrica do Douro, à qual, por decreto de 29 de Junho de 1953, foi outorgada a concessão do aproveitamento hidroeléctrico do rio Douro, que começaria por Picote e não, como inicialmente fora pensado, pelo Carrapatelo.

A barragem de Picote seria inaugurada em 1958, sucedendo-lhe as de Miranda e Bemposta, já na primeira metade da década de 60, barragens que vinham alimentar centrais subterrâneas de elevada potência, numa altura em que já estava em curso o Plano de Rega do Alentejo que daria origem à construção de mais um conjunto significativo de barragens. O ritmo da construção de barragens prolongou-se por onde os recursos hídricos o justificavam; a última que ficou a expensas do Estado Novo foi precisamente a do Carrapatelo, inaugurada em 197212.

Em 1958, ano da inauguração de Picote, a produção de energia representava cerca do triplo da quantidade relativa a 1950, confirmando-se a viragem, logo manifestada desde 1951, do predomínio nítido da energia de origem hídrica sobre a de origem térmica13.

O quadro seguinte regista as principais realizações que marcaram a evolução do programa hidroeléctrico promovido na década de 50 com um forte concurso do Estado que dirigiu para o efeito parte das verbas que lhe foram disponibilizadas ou que o próprio gerou a partir do aproveitamento do Plano Marshall.

Ano de entrada
 em serviço
Escalão
Rio
Potência instalada
 (MW)
1951
Castelo do Bode
Zêzere139
Venda Nova
Zabagão81
Pracana
Ocreza15
Belver
Tejo32
1953
Salamonde
Cávado42
1954
Cabril
Zêzere97
1955
CaniçadaCávado60
Bouçã
Zêzere50
1956
Paradela
Cávado54
1958
Picote
Douro internacional180

                                                                  Hidroelectricidade em Portugal. Memória e Desafio, REN, 2002, p.20.


A partir do relatório apresentado em Dezembro de 1959 pela Comissão de Fiscalização dos Grandes Aproveitamentos Hidro-Eléctricos, presidida pelo engenheiro civil Abel Mário de Noronha Oliveira e Andrade, é possível constatar que a materialização do aproveitamento da energia das águas dos nossos rios levada a cabo entre 1946 e 1958 implicou o investimento da importância global de 3.691.000 contos, com a seguinte discriminação14:


Hidro-eléctrica
Escalão
Investimento
(em contos)
Zêzere
Cabril
490.000
Bouçã
180.000
Castelo do Bode
650.000
Total
1.320.000
Cávado
Paradela
663.000
Venda Nova
450.000
Salamonde
210.000
Caniçada
378.000
Total
1.701.000
Douro
Picote
670.000
Total
670.000
Total
3.691.00

ADHSH, Ministério das Obras Públicas, Comissão de Fiscalização dos Grandes Aproveitamentos Hidro-Eléctricos,
Doze Aoos de Actividade (1946-1958), 1.º volume, MOP, Dezembro de 1959 (policopiado), pp. 6-7
.


Em menos de uma década a produção de energia representava cerca do triplo da de 1950, confirmando-se a viragem do predomínio nítido da energia de origem hídrica sobre a de origem térmica. Embora, em poucos anos, a produção hidroeléctrica tivesse passado a abastecer uma fatia considerável do consumo nacional, cerca de 90% no final da década de 60, em breve o aumento da procura exigiria a participação de energia de origem térmica, considerando porém que às centrais térmicas estavam reservadas funções complementares. Foi nesse contexto que foi constituída, em 1954, a Empresa Termoeléctrica Portuguesa, que também contou com a participação activa de Ferreira Dias.


1Em cujo capital o Estado participaria, conforme estipulado no decreto-lei n.º 36.206, DG, I Série, n.º 76, de 3 de Abril de 1947. Ver Maria Fernanda Rollo e J. M. Brandão de Brito, "Ferreira Dias e a constituição da Companhia Nacional de Electricidade”, Análise Social, n.º 136/137, 1996, pp. 343-354.
2 O custo relativo à obra realizada até Julho de 1952 (quando se concluiu a primeira fase) foi na ordem dos 333.500 contos, 18% assegurado por financiamento canalizado a partir do Plano Marshall.
3 Companhia Nacional de Electricidade, Lisboa, 1957.
4 Decreto n.º 36.286, de 17 de Maio de 1947, que outorga à Companhia Nacional de Electricidade, com sede em Lisboa, a concessão para o estabelecimento e exploração de minhas de transporte e subestações destinadas à interligação dos sistemas do Zêzere e do Cávado, entre si e com os sistemas exisuentes, e ao abastecimento de energia eléctrica aos grandes centros de consumo. DG, I Série, n.º 112, de 17 de Maio de 1947, pp. 428-434.
5 Ver sobre a constituição da REN e a sua evolução, Hidsoelectricidade em Portugal. Memória e Desafio, REN, 2002.
6 Samuel F. Neville e George R. Clemens, General Survey and Recommendations on The Portuguese Power Situation, Industry Division, OSR/Paris, June 15, 1950. NARA, 853 - 1950-1954; 853.2614/7-550, Junho 1950.
7 Em relação ao primeiro tipo de auxílio as verbas são relativamente pouco importantes, perfazendo um total de 508 milhares de dólares gastos na imporuação de equipamento destinado às sociedades hidroeléctricas do Cávado e do Zêzere, à Electradel Lima, à CNE e aos Serviços Municipalizados de Coimbra; de qualquer forma viabilizaram a aquisição de equipamentos que de outra forma teria sido mais difícil evitando o dispêndio de dólares.
8 Mais significativas foram as verbas disponibilizadas através do FFN, através da aplicação dos fundos de contrapartida o que significava a mobilização dos capitais portugueses e a confirmação da presença e do empenho do Estado nestas empresas de que já era parceiro. Os casos mais significativos diziam respeito às companhias hidroeléctrica do Cávado e do Zêzere que receberam fundos de contrapartida (100,8 e 90 milhões de escudos, respectivamente), destinados a apoiar a prossecução da construção da barragem de Venda Nova (da Hidroeléctrica do Cávado) e das barragens de Castelo do Bode e do Cabril (da Hidroeléctrica do Zêzere). A Hidro Eléctrica do Alto Alentejo, fundada em 1925 com o principal objectivo de promover o abastecimento de electricidade a Portalegre, Castelo Branco, Abrantes e à Fábrica Metalúrgica do Tramagal (estendeu pouco mais tarde a rede de transporte até ao Entroncamento e à fabrica de Cimentos de Leiria), não só beneficiou das vantagens como importadora a partir da utilização do auxílio directo mas também foi apoiada através do FFN (45 milhões de escudos). As verbas destinaram-se à conclusão das barragens de Belver (Tejo) e Pracana (Ocreza).
9 Luís Lucena Ferreira, "A produção de electricidade na segunda metade do século XX e a engenharia nacional”, in Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004 (no prelo).
10 ADGSH, MOP, Relatório da Actividade do Ministério no Ano de 1951, Lisboa, 1952, (policopiado), p. 27.
11 Instituído pelo Decreto-lei nº 38.186, de 28 de Fevereiro de 1951, resultando da associação de quinze empresas, o RNC passou a orientar a produção das centrais da Rede Primária tendo em vista a optimização económica e a segurança do abastecimento dos consumos.
12 Ver sobre as principais barragens e evolução da sua construção Large Damsin Portugal, Portuguese National Committee on Large Dams, Lisboa, 1992 e os textos de António Silva Gomes, José Dias da Silva e António Nascimento Pinheiro, "Barragens” e Rui Jacinto, "As barragens em Portugal: de finais de oitocentos ao limiar do século XXI”, in Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004 (no prelo).
13 ADHSH, Ministério das Obras Públicas, Comissão de Fiscalização!dos Grandes Aproveitamentos Hidro-Eléctricos, Doze Anos de Actividade (1946-1958), 1.º volume, MOP, Dezembro de 1959 (policopiado), p. 5.
14 Idem, pp. 7-8.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Publicado na Revista Ingenium N.º 123 - Maio/Junho de 2011


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