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Há 140 anos: a criação da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses

A actual Ordem do Engenheiros tem a sua origem na Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (AECP) – primeira associação profissional de engenheiros criada há 140 anos em Portugal e cuja actividade se prolongou até 1936.

A par do que acontecia internacionalmente, a criação da AECP, em 1869, confirmava o reconhecimento da engenharia como uma actividade essencial ao progresso de Portugal, e a consagração do estatuto social dos engenheiros como profissionais altamente qualificados no contexto económico, social e político da época. Era, de resto, evidente o esforço prosseguido pelos engenheiros no sentido da sua afirmação como classe, patente na problemática da defesa e definição do título de engenheiro, da salvaguarda de uma identidade profissional específica e da defesa de um espaço próprio de intervenção. Na realidade, entre outros argumentos,  a sua inserção cada vez maior num conjunto alargado de actividades, a imprescindibilidade da sua actuação no conjunto dos sectores produtivos, em particular no sector industrial, incrementara a participação dos engenheiros em todas as esferas de decisão, estimulando a sua estratégia de integração social e de afirmação pública como classe profissional organizada. Refira-se o contexto histórico em que se vinham registando os primeiros movimentos no sentido da organização profissional dos engenheiros, no tempo da Regeneração e da acção de Fontes Pereira de Melo, e a dinâmica registada em termos de desenvolvimento de infra-estruturas, em que se inscrevia a própria criação, em 1852, do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria e do corpo de engenharia, em que participavam engenheiros civis e militares. Tempo de prosperidade, breve, é certo, mas em que o País registou um crescimento razoável e durante o qual ganhou dimensão o protagonismo que os engenheiros vinham crescentemente assumindo, impondo a sua importância como agentes portadores de inovação científica e tecnológica, mas também em termos de intervenção política, designadamente no que respeitava à definição e condução das estratégias de desenvolvimento do País. Certo, porém, o facto de, por essa época, a maioria dos engenheiros portugueses ser militar e boa parte dos engenheiros não militares ter obtido a sua formação no estrangeiro, em escolas superiores francesas e alemãs.

Foi nesse quadro que se constituiu, em 1864, o Corpo de Engenharia Civil e dos seus Auxiliares1, então composto por 115 engenheiros (muitos de origem militar), 18 arquitectos e 175 condutores, organizando os serviços técnicos do ministério em cinco secções: obras públicas, minas, águas e florestas, trabalhos geográficos e estatísticos, pesos e medidas, e telégrafos. O significado do corpo de engenharia civil do MOP visava a autonomização da carreira dos engenheiros civis relativamente aos militares, que, claramente maioritários, vinham beneficiando da possibilidade de acesso aos quadros de obras públicas em regime de acumulação. Não é, portanto, de estranhar que o disposto nesse decreto de Outubro de 1864 tenha acentuando o mal-estar já instalado entre engenheiros militares e civis, agravado pela recente determinação, de Junho do mesmo ano, que impedia a acumulação de funções aos engenheiros militares. O desfecho do conflito, ao encontro dos interesses dos engenheiros militares e entre os protestos dos engenheiros civis, aconteceria com a publicação do diploma, já em 1868, que, declarando sem efeito o diploma de 1864, veio determinar que as funções de engenharia civil passavam a ser desempenhadas pelo corpo de engenheiros.

No rescaldo dos acontecimentos, reagindo à extinção do Corpo de Engenheiros Civis do MOP2, os engenheiros mobilizaram-se na criação da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses. Associação que se destacou, desde logo, como espaço de divulgação e plataforma de formação técnica. Assinale-se, aliás, a visibilidade que, durante décadas, a Associação outorgou à classe através da publicação regular da Revista de Obras Públicas e Minas (1870-1926) e da sua sucessora Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (1927-1936).

No seu conjunto, os engenheiros foram protagonistas e agentes decisivos da prossecução do esforço de modernização do País que a Regeneração almejou cumprir, particularmente evidente nos sectores da construção civil e obras públicas, e da edificação e desenvolvimento de infra-estruturas de transportes e comunicações (pontes, estradas, caminhos de ferro, portos…), dos estudos de reconhecimento do território e, obviamente, da sua integração, apesar de tudo lenta, na gestão das indústrias.

De mote próprio, os engenheiros assumiram a sua dimensão de criadores e agentes de inovação, empenharam-se em corresponder aos apelos do progresso técnico, promovendo e assinando projectos e reclamando para si iniciativas estratégicas de desenvolvimento do País. Muitas dessas diligências, demasiado ousadas, acabaram por não ter concretização, ou porque, muitas vezes, o optimismo e voluntarismo se sobrepunha a um indispensável realismo, ou porque os vários governos da fase final da Monarquia, entre sucessivas crises políticas e financeiras, não tinham condições, nem meios, para definir uma estratégia de desenvolvimento económico nacional, nem conseguiam reunir, por isso, as condições necessárias à sua materialização, situação que, de resto, se manteria uma vez implantada a República.

No que respeita à actividade da engenharia e dos engenheiros, a I República ficou indelevelmente marcada pelas transformações ocorridas no campo do ensino, reflectindo o reconhecimento da indispensabilidade de o modernizar, adaptar ao curso dos tempos e às novas exigências sociais, económicas e até políticas. Merece referência, neste domínio, o propósito de uma aproximação mais íntima entre a engenharia e a actividade económica, e a atenção conferida ao sector industrial, acompanhando, reflectindo e acelerando o processo de profissionalização dos engenheiros.

Recorde-se a acção de Manuel de Brito Camacho3, ministro do Fomento do Governo Provisório, que promulgou, em 23 de Maio de 1911, o decreto que criou o Instituto Superior Técnico4. A partir de então, os percursos entre a engenharia civil e militar5 foram formalmente cortados; do recém-criado IST, confiado à direcção do professor Alfredo Bensaúde, surgiria uma engenharia moderna, aberta a novos processos e técnicas. Além da criação do IST, promoveu-se, no mesmo ano, a reforma do Instituto de Agronomia e Veterinária (assim chamado desde 1886), que passou a denominar-se Instituto Superior de Agronomia e a formar engenheiros agrónomos e silvicultores6. Pouco tempo passado, em 1915, a Academia Politécnica do Porto também foi transformada: primeiro na Faculdade Técnica7, mais tarde, em 1926, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto8.

Entretanto, as reestruturações operadas no quadro do ensino superior vieram reacender o propósito de distinguir o ensino técnico superior do ensino técnico médio, implicando a hierarquização entre os respectivos diplomados: esta era uma situação que decorria do confronto, instalado há vários anos, entre os engenheiros e os condutores, em torno da utilização do título de engenheiro e que inevitavelmente arrastaria o envolvimento da AECP. A questão vinha crescendo em densidade e pelas implicações que tinha no mercado de emprego da Administração Pública: era inequívoco que o número de engenheiros estava a crescer e o mercado, com uma indústria transformadora praticamente inexistente, não tinha capacidade para absorver as poucas dezenas de diplomados que regularmente saíam das escolas superiores.

A duplicação do número de inscritos na AECP ilustra bem a realidade existente, passando, no espaço de 25 anos, entre 1911, ano da fundação do IST, e 1936, da constituição da Ordem dos Engenheiros, de 424 para 1097.

A verdade é que, o que tinha começado por ser um debate e uma competição em torno de um título profissional passou, pouco depois, a ser também uma disputa entre a supremacia da formação dos engenheiros no quadro de instituições do ensino superior, onde era devidamente ponderado o ensino abstracto, designadamente, das matemáticas.

No fundo, os condutores, técnicos formados pelos institutos industriais, queriam ser designados por engenheiros, no que eram veementemente contestados pelos recém diplomados, sobretudo os oriundos do IST, que numa inequívoca afirmação de superioridade intelectual e científica, pretendiam que o título de engenheiro lhes fosse atribuído em exclusividade. O conflito, marcado por alguns episódios mais crispados, ficou resolvido através da consagração de superioridade dos engenheiros formados no quadro do ensino universitário. A designação de condutor foi provisoriamente substituída pelo de engenheiro auxiliar, embora tenha vindo a ser retomada a partir de 19319.

Em 1924, a lei n.º 1638 veio conferir o título de engenheiro auxiliar aos diplomados pelos institutos industriais, incluindo, nessa designação, os condutores. A reacção daqueles que achavam ser os únicos legítimos detentores da designação de engenheiro não se fez esperar. Os alunos do IST mobilizaram-se, cerraram fileiras e lançaram-se numa autêntica campanha em defesa do título de engenheiros, em boa parte veiculada através da sua revista Técnica, e chegaram mesmo a recorrer à greve académica.

Os efeitos da greve académica, prolongando-se para lá do golpe militar de Maio de 1926, conduziram à efectiva protecção legal do título de engenheiro10 em exclusivo para os diplomados pelas escolas de ensino superior e conferindo o título de agente técnico de engenharia aos antigos condutores e aos diplomados pelos institutos industriais. Esta legislação voltou a ser revista logo em 1930, acentuando a superioridade reconhecida aos diplomados pelo IST e pela FEUP e alargando a defesa do título às colónias11.

Apesar da ocorrência de reacções dispersas por parte dos diplomados pelas outras escolas, no contexto do novo enquadramento proteccionista que o Estado Novo assegurava, o conflito foi de certa forma neutralizado, embora se tenha mantido latente ao longo das décadas seguintes.

Pois bem, foi também nesse ambiente que, no seio da AECP, ganhou expressão uma outra dinâmica, que surgira quando da revisão dos Estatutos operada em 1917, através da qual se visava definir um espaço e um caminho no sentido da organização dos engenheiros como corpo e como classe – assunto que acompanharemos no próximo artigo.


1  Diploma de 3 de Outubro de 1864, Plano de Organização do Corpo de Engenharia Civil e dos Seus Auxiliares, DG, I Série, n.º 224, de 5 de Outubro de 1864.
2  O corpo de engenheiros civis do MOP veio a ser restabelecido mais tarde, em 1886.
Manuel de Brito Camacho (1862-1934).  Político e jornalista, fundador e director do diário A Luta, chefe da União Republicana, alto-comissário em Moçambique (1921-1923). Foi ministro do Fomento do Governo Provisório entre 22 de Novembro de 1910 e 3 de Setembro de 1911.
4  O decreto determinava a divisão do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa em duas escolas autónomas, o Instituto Superior do Comércio e o Instituto Superior Técnico, e estabelecia as bases da respectiva organização. DG, n.º 121, de 25 de Maio de 1911.
5  Criada em 1837, na sequência da Revolução Liberal, a Escola do Exército foi reestruturada com o advento da I República traduzindo-se essa reestruturação na supressão do curso de engenharia civil e a redução do curso de engenharia militar para dois anos, passando as cadeiras técnicas que o compunham a ser leccionadas no IST.
Decreto de 12 de Abril de 1911 que estabeleceu as bases para a organização do ensino superior de agricultura, separando o ensino agrícola do ensino da medicina veterinária e alterando a denominação do antigo Instituto de Agronomia e Veterinária para Instituto Superior de Agronomia e concedendo aos respectivos diplomados os títulos de engenheiro agrónomo e engenheiro silvicultor.
Ver Decreto n.º 2 103 que aprovou o plano de organização da Faculdade Técnica da Universidade do Porto, DG, I Série, n.º 244, de 27 de Novembro de 1915. O plano estabelece a Faculdade como escola de engenharia civil e industrial onde se professarão cinco cursos superiores e especiais: civil, minas, mecânica, electrotécnica e químico-industrial.
Na sequência da promulgação do novo Estatuto Universitário (decreto n.º 4 554, de 6 de Julho de 1918), a Faculdade Técnica foi novamente organizada pelo decreto n.º 5 047, de 30 de Novembro de 1919, sendo definida como escola superior de engenharia onde se continuaram a professar os mesmos cinco cursos. Mais tarde, em 1926, foi promulgado um novo Estatuto da Instrução Universitária, pelo decreto n.º 12 426, de 2 de Outubro. Na sequência do que aí ficou determinado, todas as faculdades foram remodeladas. A Faculdade Técnica passou então a denominar-se Faculdade de Engenharia pelo decreto n.º 12 696, de 17 de Dezembro de 1926, mantendo-se os cursos antigos.
9 Pelo decreto n.º 20 238, de 21 de Setembro de 1931.
10 Decreto n.º 11 988, DG, I Série, de 29 de Julho de 1926.
11
Decreto n.º 19 161, DG, I Série, n.º 298, de 23 de Dezembro de 1930.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 114 - Novembro/Dezembro de 2009

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