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“Hulha branca”: uma história de triunfos, impasses e de renovados desafios

Nos finais do século XIX, já no quadro de um inegável atraso de um inegável em termos internacionais, começaram a surgir em Portugal as primeiras iniciativas no sentido de promover a utilização dos rios, sobretudo para a produção de energia, procurando minorar a grande dependência do País em combustíveis. É também nesses finais de oitocentos que o País assiste ao arranque das primeiras experiências de produção de electricidade revelando as sedutoras possibilidades que oferecia desde logo no campo da iluminação. Num curto espaço de tempo surgiram as nossas primeiras empresas de produção e distribuição de energia eléctrica (refiram-se as Companhias Reunidas Gás e Electricidade - C.R.G.E. (1891), a Central da Boavista (1903), a Central do Ouro (Porto, 1908/9), e a Central Tejo (Lisboa, 1908 e 1914).

O contexto nacional, porém, era de grande agitação política e de indefinição estratégica: com o fim da Monarquia e a implantação da República não se conseguiu a regeneração política, económica e social ambicionada. A indústria, sinónimo de modernização, ocupava um lugar secundário nas preocupações da nossa elite política e económica, apesar de existirem vozes, como a de Ezequiel de Campos, engenheiro civil e de minas pela Academia Politécnica do Porto, que à sua maneira foi procurando promover o desenvolvimento e a necessidade de proceder ao aproveitamento dos rios para a produção de energia eléctrica destinada a abastecer o País.

Assinale-se que o desencadear da I Guerra Mundial, provocando um conjunto de efeitos globalmente negativos, embora desiguais e contraditórios, acabou por produzir até um certo estímulo industrializante. Mas, entre crises internas e externas, prosseguia o debate entre aqueles que apontavam o desenvolvimento da indústria e os que vinham defendendo a via da agricultura, denunciando os alegados perigos da industrialização. Ou, na prosa de Anselmo de Andrade: “quando entre nós se promove à toa o desenvolvimento de algumas indústrias de êxito mais que duvidoso, fazendo desviar do campo para as cidades populações trabalhadoras,  corre-se o risco de colher apenas o arrependimento. Faz-se um grande mal ao País em procurar transformar em fabril uma indústria que verdadeiramente só pode ser agrícola, e preparam-se acaso para o futuro crises industriais, que não têm por certo tão fácil e pronto remédio como as agrárias” (Portugal Económico, 1918, p. 342).

O ímpeto industrial seria de pouca dura e o desconforto social foi aumentando. A crise internacional de 1921, o agravamento do déficit e o seu aproveitamento político, a inexistência de estratégia para o desenvolvimento do País ditariam o fim do ciclo. A crise bancária e a crise colonial de 1923, a falta de crédito e, já em 1924, a valorização do escudo, fariam o resto. A partir de 1924, o programa económico radical, à procura do equilíbrio das contas e da estabilidade do escudo, fracassaria nos seus propósitos agravando o mal-estar geral. A tudo isto, não era certamente estranho o eterno problema da exiguidade do mercado nacional e da dificuldade em competir no exterior ou, afinal, a questão essencial do atraso económico português. Ezequiel de  Campos  publicava então, em co-autoria com Quirino de Jesus, A Crise Portuguesa. Subsídios para a Política de Reorganização Nacional (1923).  Não esquecendo a agricultura como labor primário, apelava para a necessidade da electricidade abundante e barata. E a electricidade nestas condições provocará a introdução de outras indústrias fundamentais. Mas, em termos gerais, as propostas mais arrojadas em relação a um desenvolvimento assente na modernização/industrialização da actividade económica nacional ficariam por concretizar; deixando para trás as convicções daqueles que, como Azeredo Perdigão (“A indústria em Portugal”, Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916), procuravam rebater os argumentos de Anselmo de Andrade.

Sempre presente, o problema da produção da hidroelectricidade contava já com várias empresas: valendo a pena destacar a constituição, nesta fase, da Companhia Electro-Hidráulica de Portugal (1918) e da Hidro-Eléctrica do Alto Alentejo (1925), com o principal objectivo de abastecer as cidades de  Portalegre, Castelo  Branco, Abrantes e a Fábrica Metalúrgica do Tramagal (estendeu pouco mais tarde a rede de transporte até ao Entroncamento e à Fábrica de Cimentos de Leiria). Logo a seguir, em 1926, seria publicado o decreto n.º 12 599 promulgando a lei dos aproveitamentos hidráulicos.
Nesse ano, com o golpe de 28 de Maio, que conduziria à institucionalização do Estado Novo em 1933, fechava-se um ciclo. Embora a crise de 1929, em Portugal, tenha tido efeitos tardios e mitigados, não deixou de acentuar o mal-estar económico e social na exacta medida em que mostrou ostensivamente o nível do atraso nacional.
Foi neste contexto que surgiram várias propostas de industrialização do País, designadamente  nos Congressos da Engenharia (1931) e da Indústria Portuguesa (1933). Ezequiel de Campos, mais uma vez, na tese que apresentou ao I Congresso da Indústria (“Influência da Electrificação do País na Indústria Portuguesa”) passava em revista a situação da electrificação nacional, defendendo:
(i) a concentração da produção da electricidade, quer pela eliminação de muitas termoeléctricas sem valor económico, quer mediante a instalação de novas e eficientes centrais hidroeléctricas;
(ii) a interconexão das centrais de valia regional;
(iii) o início!de uma urgente acção de fomento pela extensão metódica de linhas de transporte, abastecimento e distribuição de electricidade pelo mínimo custo e pelo mínimo preço para todas as suas aplicações.

No fundo, era necessário fazer-se quase tudo, tornando-se indispensável uma intervenção do Governo, determinada e dotada de capacidade técnica e financeira. Porém, foi só quando o País se viu confrontado com os efeitos mais negativos da II Guerra Mundial que a questão sucessivamente evocada da produção eléctrica encontrou, finalmente, um desfecho adequado que, aliás, teve muito a ver com a actuação de Ferreira Dias, então subsecretário de Estado do Comércio e Indústria.
A lei n.º 2002, da Electrificação do País, de Dezembro de 1944, estabelecia, finalmente, as bases a que passariam a obedecer a produção, o transporte e a distribuição de energia eléctrica, consagrando a centralização da produção e a preferência pela hidroelectricidade; além disso, o projecto da electrificação era assumido como um empreendimento da responsabilidade do Estado.

Em breve, o processo de electrificação do País foi efectivamente posto em marcha. Em Julho de 1945 o Governo divulgou a política definida em termos de grandes aproveitamentos hidroeléctricos e logo a seguir foram constituídas as sociedades Hidro-Eléctrica do Zêzere e do Cávado, sendo-lhes outorgadas as concessões dos aproveitamentos do Zêzere e do Cávado-Rabagão.
Entretanto,  em 1947, com a criação da Companhia Nacional de Electricidade (CNE), polícia sinaleiro da electricidade portuguesa, na expressão do seu primeiro presidente, Ferreira Dias, que viabilizou o fornecimento de energia a algumas actividades definidas na lei n.º 2002, bem como a interligação dos sistemas do Cávado e do Zêzere, entre si e com os sistemas existentes (decreto n.º 36 286, de 17 de Maio de 1947), foi possível constituir, de facto, uma rede eléctrica nacional, a REN, e implementar uma rede primária com o significado de electrificação nacional.
1951 foi um ano “mágico” no capítulo de aproveitamentos hidráulicos; concluíram-se quatro grandes empreendimentos: os escalões de Castelo do Bode, no Zêzere (Janeiro); Venda Nova, no Rabagão com central sobre o Cávado (Junho); Pracana, no Ocreza; e Belver, no Tejo. Salvo este último, que só trabalhou em regime experimental, os três primeiros aproveitamentos acrescentaram 300 milhões de kWh à produção nacional.
Em virtude da entrada em funcionamento dessas centrais, o quadro da produção de energia alterou-se profundamente, espelhando os resultados da primazia conferida à produção hidroeléctrica:
Ainda em 1951, foram lançados mais dois grandes aproveitamentos: o do Cabril, constituindo o segundo escalão do Zêzere, e o de Salamonde, no Cávado, susceptíveis de aumentar a capacidade de produção de energia hidroeléctrica em mais 370 milhões de kWh.

O esforço e as obras desenvolvidas, confirmando o empenho em produzir energia hidroeléctrica, materializou-se em barragens e centrais que, gradualmente, começaram a marcar os nossos rios envolvendo a participação de um assinalável corpo de profissionais portugueses contando com o apoio do, entretanto,  criado Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
Formatada a Rede Eléctrica Primária, para a sua coordenação e interligação com o sector privado, foi ainda nesse ano de 1951 instituído o Repartidor Nacional de Cargas, que geria cerca de 90% da produção energética nacional.

Em 1953 foi constituída a Hidroeléctrica do Douro, à qual foi outorgada a concessão do aproveitamento hidroeléctrico do rio Douro, que começaria por Picote e não, como inicialmente fora pensado, pelo Carrapatelo. Picote seria inaugurado em 1958, sucedendo-lhe Miranda e Bemposta, já na primeira metade da década de 60. Nesta altura já estava em curso o Plano de Rega do Alentejo que daria origem à construção de mais um conjunto significativo de barragens. O ritmo da construção prolongou-se, durante o Estado Novo, até à inauguração do Carrapatelo, em 1972.
Em menos de uma década a produção de energia representava cerca do triplo da de 1950, confirmando-se a viragem do predomínio nítido da energia de origem hídrica sobre a de origem térmica. Embora até ao final dos anos de 60 a produção hidroeléctrica abastecesse cerca de 90% do consumo nacional, o gradual aumento da procura exigiria a participação de energia de origem térmica. De resto, mesmo tendo em conta que às centrais térmicas estavam reservadas apenas funções complementares, em 1954 tinha ficado constituída a Empresa Termoeléctrica Portuguesa.

Em 1969, seria então criada a Companhia Portuguesa de Electricidade (incluindo as diversas empresas que constituíam a Rede Eléctrica Primária) com o encargo de prosseguir os programas de construção das hidroeléctricas em curso e das termoeléctricas de “base”, quer a fuelóleo (Carregado e Setúbal – a última grande central construída para queimar fuelóleo; embora o primeiro grupo só tenha entrado em funcionamento em 1979, o início da construção remonta a 1973), quer a carvão importado, cumprindo a estratégia de diversificação de fontes energéticas (onde se destaca Sines, uma central térmica convencional que queima carvões importados) e, claro, a promover o desenvolvimento da interligação e a rede de transporte de electricidade. No último quartel do século XX, destaque-se a evolução do aproveitamento do Douro, com a barragem de Crestuma-Lever (1986), a construção das grandes barragens da Aguieira (1981) e do Alto Lindoso (1992) e a concretização do projecto do Alqueva.
Determinante, neste intervalo, a entrada em funcionamento da Central Térmica de Sines (em 1985), que significou o fim, pelo menos temporário, do predomínio da energia hidráulica relativamente à térmica e a “ressurreição” da Central Térmica da Tapada do Outeiro, a primeira de ciclo combinado instalada em Portugal.

O futuro, como sempre, é difícil de prever. No entanto, agora num quadro de acrescida concorrência, podem antever-se alguns desafios que se prendem, designadamente, com a liberalização dos mercados energéticos, o esforço de diversificação, as preocupações ambientais, a eventual recuperação da alternativa nuclear... Atendendo ao que o passado nos demonstra, resta-nos esperar que sobre as hesitações e as disputas estéreis que, nesta matéria, marcaram a nossa história contemporânea, comprometendo simultânea e cumulativamente o nosso desenvolvimento económico e social e o nosso património científico e tecnológico, prevaleçam boas e atempadas decisões.

Referências

  • Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2005.
  • Hidroelectricidade em Portugal. Memória e Desafio, REN, 2002.
  • Large Dams in Portugal, Portuguese National Committee on Large Dams, Lisboa, 1992.
  • Rollo, Maria Fernanda e Brito, J. M. Brandão de, “Ferreira Dias e a constituição da Companhia Nacional de Electricidade”, Análise Social, n.º 136/137, 1996, pp. 343-354.
  • Rollo, Maria Fernanda, “Percursos Cruzados”, in Engenho e Obra. Uma abordagem à História da Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002.
  • Engenho e Obra. Uma abordagem à História da Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002.
  • Transporte de Electricidade, REN, 2001.

Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 88 - Julho/Agosto de 2005

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