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Marconi em Portugal ciência e engenharia na génese das radiocomunicações


G. Marconi em Signal Hill (Terra Nova), junto do aparelho de TSF que utilizou para receber os primeiros sinais transatlânticos, 12 de Dezembro de 1901
Fonte: Arquivo da Companhia Portuguesa Rádio Marconi

Neste ano em que se comemora o centenário da atribuição do Prémio Nobel da Física ao inventor italiano Guglilelmo Marconi (1909-2009), pelas suas descobertas no campo da propagação das ondas electromagnéticas e das aplicações práticas da telegrafia sem fios, assinalam-se também os cem anos da introdução deste sistema no nosso país. Foi precisamente em 1909 que a Armada portuguesa encomendou os primeiros aparelhos da marca Marconi tendo em vista a sua instalação no Arsenal da Marinha e Vale do Zebro. Mas ao trajecto de vida de Guglielmo Marconi somam-se ainda vários episódios particularmente coloridos do quotidiano português, entre os quais devem recordar-se as suas três visitas a Lisboa que, em 1912, 1920 e 1929 fizeram notícia na capital; ou a cerimónia que em 18 de Julho de 1922 o levou à cidade da Horta, ilha do Faial, onde recebeu honras de cidadão honorário.

Com efeito, ao percurso de Marconi em Portugal associam-se inevitavelmente as dimensões ciência, tecnologia e empresa, que se entrecruzam como vectores essenciais desta história. Desde logo, destaca-se a sua importância no quadro do desenvolvimento das radiocomunicações portuguesas, nomeadamente pelo que significou em matéria de importação e transferência de conhecimento técnico e científico; para além desta concentração de saberes e experiências, Marconi esteve também na génese da exploração comercial das comunicações sem fios, encontrando-se na origem da Companhia Portuguesa Rádio Marconi, fundada em 18 de Julho de 1925 e que assumiu as nossas ligações intercontinentais por quase oito décadas; mas também o seu impacto no quotidiano, pelo que significou em matéria de percepção da distância e velocidade, deixou uma importante herança histórica que importa hoje compreender.

O cometimento na investigação científica, estimulado pela explosão industrial oitocentista e pelo crescendo de inovações a ela associadas, permitira desenvolver uma fórmula combinada entre as descobertas laboratoriais e a sua aplicação prática à realidade comercial. À Ciência colocara-se então o desafio de responder às necessidades de um mercado cada vez mais impaciente e determinado, onde a invenção e a melhoria técnica foram progressivamente integrando a actividade económica.
Neste domínio, foi exemplar a emergência do sector das telecomunicações, representado no mapa de uma rede mundial em rápida expansão, estimulado por uma sociedade que exigia meios de comunicação tão instantâneos quanto a tecnologia permitisse. Depois da primeira amarração de um cabo telegráfico submarino sob o canal da Mancha, em 1851, as conquistas de Morse resultaram em grandes concentrações empresariais, superando a barreira atlântica em finais da década seguinte. Nos últimos anos 80 do século XIX, uma outra invenção anunciou nova revolução nas comunicações: o telefone, patenteado por Bell em 1876, viria, naturalmente, ocupar uma fatia fundamental do sector. Era este o mundo, quando em 1896 Marconi rompeu o silêncio que envolvia a atmosfera e fez pressentir a chegada de mais uma revolução para a ciência e a técnica. Experimentava com sucesso, pela primeira vez, comunicar sem fios. Ao longo de 1895, as experiências de Marconi tinham revelado os primeiros resultados através da utilização das ondas hertzianas, permitindo, no ano seguinte, o registo da sua primeira patente de invenção em radiotelegrafia. Mas o passo fundamental que assegurou a credibilidade da TSF foi dado em Dezembro de 1901, quando um sinal radioeléctrico cortou pela primeira vez o Atlântico.

Mas foi nos primeiros anos do século XX que se alcançaram momentos decisivos para o esboço do traçado mundial promovido pela companhia Marconi e suas subsidiárias. Este articulado de comunicações obedeceu, ao lado dos critérios políticos próprios da conjuntura europeia anterior à Grande Guerra, a imperativos económicos que reforçaram a concorrência crescente entre as principais potências industriais na corrida pela hegemonia tradicionalmente conferida à Grã-Bretanha. A projecção da rede imperial britânica de TSF constituiu por isso, desde cedo, uma prioridade estratégica da Marconi’s Wireless, considerando a afirmada superioridade inglesa no mar e o necessário reforço das suas ligações aos domínios coloniais. Parte deste projecto previa o estabelecimento de uma rede paralela entre Portugal e as suas colónias africanas, proporcionando este meio a alternativa, se não mesmo a substituição, do sistema de cabos submarinos.

Uma primeira proposta, apresentada pela Marconi’s Wireless em 1910, previa a ligação entre o Continente, Açores, Madeira e Cabo Verde, resultando, dois anos mais tarde, num primeiro acordo de fornecimento de estações radiotelegráficas ao Governo português. Mas o projecto teria de ser adiado, pesando aqui a insuficiência dos recursos financeiros do Estado indispensáveis ao cumprimento da sua parte do acordo. À semelhança do que sucedeu com as redes telefónicas das cidades de Lisboa e Porto, ou com as ligações submarinas internacionais, o estabelecimento de uma estrutura de radiocomunicações teria de aguardar pelo pós-guerra e a prática de uma política de concessões operada com capital estrangeiro, reaparecendo a empresa de Marconi neste novo cenário, não só como fornecedora mas também exploradora da rede portuguesa.

Em matéria de desenvolvimento científico, o Portugal de novecentos manifestava um considerável atraso em relação aos vizinhos europeus – embora despontasse a curiosidade sobre as inovações que por fora se iam concretizando, os incentivos à criação científica nacional eram insuficientes. Não obstante, as reacções ao novo meio de comunicação espalharam-se um pouco por toda a comunidade especializada e pelo público de um modo geral, correndo depressa, através da literatura mais ou menos científica, as notícias sobre “o raio invisível” marconiano que pairava sobre a vida quotidiana. Mas os avanços de Marconi sobre as potencialidades da radiotelegrafia interessaram sobretudo, e desde cedo, a Marinha portuguesa. Atenta à importância do sistema no mar, e concentrando-se nas experiências do cientista italiano, a Marinha veio a ser um dos principais defensores da sua introdução nos meios de comunicação navais nacionais.

O ano de 1912 marcou, de certo modo, a génese da rede portuguesa Marconi, conjugando-se nesta mesma data a primeira viagem do inventor a Lisboa e a assinatura do acordo com a empresa a que deu vida. Entre este período e a abertura do serviço comercial radiotelegráfico decorreu, porém, uma década e meia, pautada por avanços científicos, entraves negociais e profundas transformações sobre o mundo renascido do conflito mundial. Recorde-se que a Grande Guerra tinha implicado profundas transformações, quer no domínio político, social e económico, como no quadro de inovação tecnológica, para a qual Marconi contribuiu através do desenvolvimento da radiotelefonia e do sistema de onda curta.
Em Dezembro de 1926, passados alguns anos de construção das respectivas estações, foi então inaugurada a Marconi portuguesa. Ao lado da Imperial Wireless Chain britânica e de tantas outras teias de comunicações em crescimento, a rede Marconi conquistava finalmente dimensão em Portugal.

Estava traçado o caminho para o desenvolvimento da TSF portuguesa, onde à curiosidade científica se aliou o interesse técnico, reunindo cientistas e engenheiros em torno do invento de Marconi. Assim o testemunhou um artigo entusiástico de um jovem estudante de engenharia electrotécnica, que em 1927 notava as potencialidades das radiocomunicações:
Para se fazer uma ideia da rapidez com que o serviço é feito direi que um telegrama chegou à central Rádio após um percurso de 40 segundos dentro dos tubos pneumáticos, um minuto depois estava registado com determinado número, passado outro minuto estava na devida altura da mesa dos rádios para Londres onde passou imediatamente à máquina perfuradora da fita, a qual se assemelha em tudo a uma vulgar máquina de escrever que perfura uma tira de papel com os traços e pontos dos sinais Morse pelo mesmo sistema que uma máquina vulgar imprime as letras a tinta. Esta fita (...) entra directamente no automático de transmissão que trabalha segundo o princípio do relais polarizado, sendo este que substitui o vulgar manipulador, (...) por intermédio de um simples reóstato pode fazer-se variar a velocidade de transmissão de 20 a 200 palavras por minuto.1

Em 25 de Setembro de 19292, a primeira página do jornal O Século noticiou a terceira visita de Guglielmo Marconi, que se destacava já como reputado cientista e empresário, vindo então visitar as instalações da Companhia Portuguesa Rádio Marconi, constituída essencialmente por capital da companhia britânica Marconi’s Wireless Telegraph Company Ltd.. O inventor italiano chegou a Lisboa no dia 23 com a intenção de conhecer a sede da nova companhia e a estação de Alfragide, recentemente construída, onde vários operadores portugueses se ocupavam já das comunicações radiotelegráficas com as colónias portuguesas em África, alguns países europeus e do continente americano.

Em certa medida, concluía-se aqui um ciclo de maturação das ligações de Portugal com o Mundo, deixando entreaberta a porta para a expansão da nova malha mundial de radiocomunicações. Ciclo este que, embora marcado pelos primeiros anos da Ditadura Militar, se encontrou intimamente associado ao processo de negociação e introdução do sistema durante os anos da I República, onde ao discurso desenvolvimentista se acrescentou o contrato de concessão que deu verdadeiro início à exploração comercial da TSF.

1 MORAES, Madruga de, “Via Radio Directa”, in Técnica, nº 8, Março 1927, p. 102.
2 “O grande inventor Guilherme Marconi, acompanhado da sua esposa, visitou, em Lisboa e Alferrarede [sic], as instalações da Companhia que tem o seu apelido” in O Século, n.º 17 080 de 25 de Setembro de 1929, p.1.
Maria Fernanda Rollo e Inês Queiroz, Marconi em Lisboa. Portugal na rede mundial de TSF, Fundação PT, 2007.
Sítio Marconi: www.fundacao.telecom.pt/Default.aspx?alias=www.fundacao.telecom.pt:89/sitiomarconi


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 112 - Julho/Agosto de 2009

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