fechar
Acessibilidade (0)
A A A

Escolha o idioma

pt
5898a80e56233bb2a3e7d468b7e5cd1e.jpg

Memória do I Congresso Nacional de Engenharia (1931)

No início dos anos 30 do século XX, realizaram-se em Portugal dois congressos muito significativos, promovidos essencialmente por engenheiros, que ficaram a marcar a história da engenharia e o percurso da economia portuguesa durante o Estado Novo. Foram eles o I Congresso Nacional de Engenharia, a que se dedica este artigo, e o I Congresso da Indústria Portuguesa.

Recorde-se, antes de mais, o papel da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (criada em 1869) e como essa associação concentrava a sua acção em três questões essenciais: a regulamentação da actividade do engenheiro e a institucionalização de uma organização profissional (na origem da Ordem dos Engenheiros), a organização do I Congresso Nacional de Engenharia e a aquisição de uma nova sede para a Associação (a que actualmente existe).

Na base dessa actividade residia, evidentemente, o entendimento da importância e do protagonismo que os próprios engenheiros vinham adquirindo na sociedade portuguesa e a adopção de estratégia claramente ofensiva relativamente ao papel que deviam desempenhar.

Em termos gerais, pode dizer-se que, como a sua associação profissional traduzia, os engenheiros procuravam então concretizar os seus propósitos através de um explícito projecto de profissionalização e pela consolidação da defesa do título de engenheiro, em que se enquadrava a criação da Ordem, e assumir uma posição relevante na definição e concretização da estratégia económica que o País teria de adoptar.

O tom tinha sido lançado no passado, e crescia entre circunstâncias que a conjuntura económica e política potenciava; em tempos mais recentes, de crise em crise, na sequência de uma guerra mundial cujos efeitos, maiores e mais duradouros, se repercutiram num tempo para além do qual era difícil fazer previsões. São inúmeros os testemunhos de intervenção dos engenheiros, apresentando ideias, defendendo posições, realizando propostas quanto ao caminho que o País deveria prosseguir, sendo justo recordar, entre os nomes mais representativos, Ezequiel de Campos.1 Tudo isso decorrente e confirmando a forma como os próprios engenheiros se viam e do que consideravam ser o seu papel no enquadramento do percurso económico do País, como ilustra o artigo de J. V. Duro Sequeira, engenheiro civil pelo IST, “As funções do engenheiro na indústria moderna”, publicado na revista da AECP: Nesta cruzada do ressurgimento nacional deve caber à nossa Associação um papel primordial. A sua acção deve ser incessante e aplicar-se a todos os objectos da sua competência. Tudo o que diga respeito aos caminhos de ferro, às estradas, aos portos, às indústrias lhe deve ser submetido para que ela dê o seu parecer2. E terminava, salientando a importância da técnica na vida económica moderna: É sobre ela que se apoia o sistema social, é por meio dela que a nação progride e se enriquece. Conclusão esperada: a imperatividade da acção dos engenheiros, principais repositórios e agentes práticos desse saber técnico, reagindo contra o sombrio abatimento e contra esta indiferença prostrada em que todo o desejo, toda a esperança, toda a vontade sossobra.3

O discurso sobre o papel dos engenheiros aprofundar-se-ia nos anos seguintes, reflectindo, como alguns chegaram a referir, uma verdadeira cruzada pelo reconhecimento da sua indispensabilidade e incontestabilidade em torno da sua intervenção a diversos níveis da actividade económica e também política. Ou, dito de outra forma, a defesa de que pertencia aos engenheiros a parcela fundamental na definição e estruturação da política económica do País, como se afirmaria no Congresso Nacional de Engenharia: Na própria administração do Estado (…) deve o engenheiro por direito próprio assumir postos de direcção mesmo os mais elevados.4

É com esse propósito e nesse tom que se inscreve a realização de um grande Congresso Nacional de Engenharia que a AECP perspectivava nos finais dos anos 20. O Congresso concretizar-se-ia em 1931, animado sobretudo por novos engenheiros, jovens engenheiros, muitos saídos do IST, que vinham participando na campanha da defesa do título que envolveu a agitação estudantil no IST no ano lectivo de 1924/25 e que, no quadro da AECP, tomavam posição, agitavam as hostes, mobilizavam esforços e saíam a terreiro na reivindicação e defesa do lugar do engenheiro na sociedade moderna. Vejam-se os números e a esmagadora proporção dos novos sócios da AECP saídos do IST5 que vão, de resto, renovar a própria direcção da Associação.

Em 1930, a AECP elege na sua agenda de prioridades a realização do reiteradamente evocado Congresso Nacional de Engenharia, projectando-o acompanhado de uma exposição sobre a engenharia que se fazia em Portugal.

Projectou-se então um congresso ambicioso - na forma, no conteúdo e, acima de tudo, nos objectivos. Na linha do mote lançado anos antes pelo então secretário-geral do Congresso José Vasco de Carvalho, a iniciativa decorria de um simples e básico pressuposto: sendo tão vasto e por tal forma importante o campo de acção do engenheiro nas sociedades modernas, é indispensável que entre nós o engenheiro se integre nesta corrente, deixe de exercer uma actividade produtiva na mais apagada obscuridade em que a tem exercido e passe a exercê-la com conhecimento e aplauso geral da nação; é necessário interessar toda a nação nas grandes obras de fomento e de engenharia desviando a sua atenção das prejudiciais preocupações da baixa política para os importantes problemas da produção. Esses problemas, sérios, doravante têm de ser estudados, discutidos e apresentados perante a nação pelos competentes, (…) por engenheiros.6
Daí, a realização do Congresso e a ambição que então envolvia o elenco de objectivos há muito apontados:
- Melhorar as condições morais e materiais do engenheiro;
- Desenvolver e elevar o culto da profissão;
- Promover o desenvolvimento da ciência e da técnica;
- Estudar a situação económica da Nação e marcar as directrizes da sua rápida evolução e debater os principais problemas de fomento, apontando ao Estado as soluções mais convenientes e interessando a Nação na sua resolução;
- Fornecer aos organismos produtores os ensinamentos adequados para a intensificação da produção.7

O final dos anos 20 parecia, a todos os títulos, ter coincidido com uma dos momentos em que a campanha em nome da engenharia e dos engenheiros em Portugal assumiu maior intensidade ou, pelo menos, um discurso mais empolgado.

Quando, por fim, em 1930 a iniciativa do Congresso foi retomada e, desta feita, concretizada, a apresentação e os objectivos apontados assumiam um tom bastante mais moderado: Destina-se a discutir os problemas de carácter técnico-económico que interessam a Portugal, a mostrar a vitalidade e o trabalho da Engenharia Portuguesa e a desenvolver e elevar o culto da profissão do Engenheiro.8

O Congresso teve uma grande importância e um grande significado, tendo mobilizado praticamente toda a engenharia nacional em torno do objectivo de consagrar em letra de lei a definição de engenheiro diplomado por escolas de ensino superior de engenharia. Organizado pela AECP, o Congresso contava com a colaboração da Associação dos Engenheiros Civis do Norte de Portugal, do IST, da FEUP e dos Cursos de Engenharia da Escola Militar. Além disso, mantinha-se a ‘cruzada’ fundamental e até a ambição espelhada na magnitude da equipa organizativa do Congresso, que contava, na sua Comissão Executiva, com um outro secretário-geral, o então jovem engenheiro Ferreira Dias.

Apesar de todos os esforços feitos, havia a consciência de que o Congresso que se ia reunir não representava todos os engenheiros; daí o apelo que, sob a forma de editorial surgiu na Revista da AECP: Sob o ponto de vista da forma como encaram o Congresso, os Engenheiros dividem-se em três categorias: os entusiastas, os indiferentes e os cépticos. (...) Os primeiros são os que têm fé; os segundos os que a têm mas não a usam; os terceiros os que a não têm, (…)9. E embora, com alguma ironia, se reconheça a liberdade de pensamento, era afirmado que (…) um engenheiro não tem o direito de não olhar com atenção para o Congresso da Engenharia. (…) [sobre a engenharia e os engenheiros era importante] mostrar que Portugal tem um pensamento seu. O Congresso da Engenharia tem por fim mostrar que os Engenheiros portugueses sabem o que é preciso fazer e como se deve fazer o que está sob a alçada da sua competência.10

Em 7 de Junho de 1931 realizou-se então, na Sociedade de Geografia de Lisboa, a sessão inaugural do I Congresso Nacional de Engenharia. Tratou-se, sem dúvida, de um momento alto da já longa história da nossa engenharia e, adicionalmente, um importante contributo sobre a forma como se devia preparar o arranque para o desenvolvimento da economia portuguesa nestes primeiros tempos do que viria a ser o Estado Novo.

O Congresso constituiu-se num momento de afirmação pública do engenheiro, quer individualmente como protagonista, quer como classe, inegavelmente audível em todos os campos, incluindo o político. Num País parco em recursos e em competências técnicas, os engenheiros reunidos em Congresso assumem-se como uma elite. Procuram a sua legitimidade social e a consagração pública, assumindo com clareza um estatuto próprio na sociedade. Elite, mais do que tecnológica porque precursora do futuro que projecta e vislumbra como o melhor para o País, até porque na obra feita, a engenharia nacional, residia a prova mais evidente e palpável das suas virtudes e capacidades empreendedoras


1 Ezequiel de Campos (1874-1965). Engenheiro civil e de minas pela Academia Politécnica do Porto. Foi ministro da Agricultura na I República, e colaborador da Seara Nova. Aderiu ao novo regime do Estado Novo durante o qual foi engenheiro chefe dos Estudos Hidráulicos do Douro, do Cávado e do Tejo e procurador à Câmara Corporativa de 1935 até 1965. Publicista e pensador, deixou uma vasta bibliografia sobre a situação económica e propostas de solução para o atraso português.
2 J. V. Duro Sequeira, “As funções do engenheiro na indústria moderna”, in Revista de Obras Públicas e Minas, n.º 6312, Dezembro de 1924, p. 152.
3 Idem.
4 “Congresso Nacional de Engenharia”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 643, de Novembro-Dezembro de 1927, pp.201-203.
5 Entre 1931 e 1934 mais de 70% dos novos sócios da AECP são diplomados pelo IST; além disso muitos assumiram lugares na direcção da Associação, a começar pelo próprio Ferreira Dias.
6 “Congresso Nacional de Engenharia”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 643, de Novembro-Dezembro de 1927, p.203.
7 Idem.
8 1.º Congresso Nacional de Engenharia, Lisboa – 1931. Relatório, Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1931, p. 25.
9 “1.º Congresso Nacional de Engenharia. Algumas palavras” in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, Ano LXI, n.º 658, de Abril de 1930, p.82.
10 Idem.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Publicado na Revista Ingenium N.º 120 - Novembro/Dezembro de 2010

Parceiros Institucionais