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Os engenheiros e a sua Ordem II: a criação da Ordem dos Engenheiros


Retomemos a História e o que ficou escrito no final do artigo dedicado aos antecedentes da criação da Ordem dos Engenheiros publicado no número anterior da Ingenium.
A segunda metade dos anos 20 e os primeiros anos da década de 30 do século XX foram dominados, no âmbito dos engenheiros agrupados no quadro da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (AECP), por três questões essenciais: a regulamentação da actividade do engenheiro e a institucionalização de uma organização profissional, a organização do I Congresso Nacional de Engenharia e a aquisição de uma nova sede. Na verdade, confiantes do seu papel e do seu protagonismo, os engenheiros, como vimos, adoptam então uma estratégia claramente ofensiva. Em termos gerais, procuraram concretizar as suas ideias, primeiro através de um explícito projecto de profissionalização e pela consolidação da defesa do título de engenheiro em que se enquadra a criação da Ordem; logo depois, pela assunção de um protagonismo cada vez mais evidente no quadro da definição da política e da estratégia económica do País.
O tom tinha sido lançado no passado, e crescia entre circunstâncias que a conjuntura económica e política potenciava; em tempos mais recentes, de crise em crise, na sequência de uma guerra mundial cujos efeitos, maiores e duradouros, se repercutiram num tempo para além do qual era difícil prever. Dessa altura, regista-se um bom exemplo da forma como os engenheiros se viam e do que consideravam ser o seu papel no enquadramento do percurso económico do País no artigo “As funções do engenheiro na indústria moderna” de J. V. Duro Sequeira, do engenheiro civil pelo IST, publicado na revista da AECP: Nesta cruzada do ressurgimento nacional deve caber à nossa Associação um papel primordial. A sua acção deve ser incessante e aplicar-se a todos os objectos da sua competência. Tudo o que diga respeito aos caminhos de ferro, às estradas, aos portos, às indústrias lhe deve ser submetido para que ela dê o seu parecer1. Termina, salientando a importância da técnica na vida económica moderna: É sobre ela que se apoia o sistema social, é por meio dela que a nação progride e se enriquece. Conclusão esperada: a imperatividade da acção dos engenheiros, principais repositórios e agentes práticos desse saber técnico, reagindo contra o sombrio abatimento e contra esta indiferença prostrada em que todo o desejo, toda a esperança, toda a vontade sossobra.2
Não muito mais tarde, em 1927, José Mendes Leal, engenheiro mecânico, também diplomado pelo IST, proferia na AECP uma conferência dedicada ao tema “A moderna função social do engenheiro”, onde começa por fazer um apelo ao ensino experimental e ao seu melhoramento e evoca e elogia a preparação científica do engenheiro3. Depois, procura recentrar a actividade dos engenheiros no quadro da actividade económica.
Definição de identidade e funções que o conceito de “moderno” sugere e ilustra e que será reiteradamente retomado no discurso sobre o papel dos engenheiros que se propagará nos anos seguintes. Trata-se de uma verdadeira cruzada pelo reconhecimento da sua indispensabilidade e incontestabilidade em torno da sua intervenção em diversos planos da actividade económica… e também política.
Acrescente-se, por isso, essa outra dimensão da cruzada empreendida, ainda mais ambiciosa: é a altura de produzirmos uma afirmação que não precisa de justificação porque é axiomática: “os grandes problemas de fomento são sempre obras de engenharia”; o mesmo é afirmar que aos engenheiros está reservado um papel preponderante e da maior responsabilidade nas sociedades modernas. Ou, como quem diz, pertence aos engenheiros a parcela fundamental na definição e estruturação da política económica do País. E fica até dito: Na própria administração do Estado (…) deve o engenheiro por direito próprio assumir postos de direcção mesmo os mais elevados4. José de Araújo Correia, engenheiro de minas, ia até um pouco mais longe na concepção que defendia sobre a moderna função social do engenheiro: o avanço material e económico, até certo ponto moral, das sociedades modernas, deriva em primeiro lugar da importância da função social que o engenheiro nelas exerce5. Era claro o desafio, crua e pragmaticamente explicitado, onde se incluía a realização de um grande Congresso Nacional de Engenharia que a AECP perspectiva para breve nesses finais dos anos 20. O Congresso de que se fala em 1927, já uma iniciativa adiada de anos passados, concretizar-se-ia apenas em 1931; retomá-lo-emos mais adiante neste texto; mas o espírito e a cruzada mantiveram-se na ordem do dia. Nesse quadro, entretanto, ocorreram outros desenvolvimentos na vida da AECP, em particular relativos ao percurso que conduziria à criação da Ordem.
Na verdade, encontrados o espírito, o tom e a estratégia, uma inegável persistência justificava o axioma criando o cenário essencial onde se moveriam os engenheiros, empenhando-os na regulamentação da sua actividade e na aspiração de institucionalizar uma organização profissional.
Naturalmente, a intenção mantinha essa íntima associação com a questão da defesa do título de engenheiro que o diploma de 1926 viera em parte resolver mas não erradicar.
Tudo isso está, de resto, patente nas múltiplas intervenções públicas que os engenheiros levam a cabo no sentido da criação da Ordem, que os diversos órgãos dedicados à engenharia amplificam. É na verdade de assinalar a persistência, o ritmo, a sucessão ininterrupta de artigos que então surgem dedicados à essência de “ser engenheiro”, à sua função, à propriedade desse título, na Revista da AECP, na Técnica, da Associação dos Estudantes do IST, na Revista da Faculdade de Engenharia do Porto.
É assim que J. E. Dias da Costa, engenheiro do IST, também se manifesta no momento em que a nossa Classe tem novamente de se preparar para a luta contra intrusos que não desistem de se apropriar do nosso título se empenha na demonstração do título de Engenheiro ser bem um título – um título honorífico – e não o nome duma profissão. Indignado, entre tantos outros exemplos pela referência ao Sr. Pacheco então saída na imprensa, referindo-se a Duarte Pacheco, Dias da Costa sai a terreiro na defesa do título, da reclamação da sua protecção junto do Estado apelando em prol de uma classe, forte, unida, animada de fervoroso espírito de classe, pois Sem um título de que os Engenheiros se orgulhem e façam respeitar pelo resto da sociedade, a Ordem dos Engenheiros é uma utopia6. A protecção do título, a regulamentação da profissão, a defesa e consagração da classe que procura o seu lugar no quadro mais geral da sociedade, além da esfera técnica em que já imperava, é parte da estratégia e das prioridades inscritas na agenda da AECP que compõem o caminho da reclamação feita em nome da criação da Ordem dos Engenheiros. Vejam-se os relatórios da Direcção da AECP relativos a esse período, e a nomeação dos problemas vitais da Associação: estão lá todos estes argumentos a que se junta o da necessidade de uma nova sede.
Logo no relatório de 1929 surge em alínea à parte a questão da Ordem, e o registo da entrega, ao ministro do Comércio, de um projecto, por nós elaborado, da Regulamentação da nossa profissão e da criação da ordem dos Engenheiros. Esperamos que S. Ex.ª concorde com o nosso projecto e se assim for será um passo importante no caminho da resolução dum dos nossos problemas máximos7.
São sobretudo os novos engenheiros os que maior dinamismo assumem na condução dessas iniciativas; à imagem de Dias da Costa, são esses jovens engenheiros, muitos saídos do IST, parte dos que tinham animado a campanha da defesa do título que envolveu a agitação estudantil no IST no ano lectivo de 1924/25, que agora, no quadro da AECP, tomam posição, agitam as hostes, mobilizam esforços e saem a terreiro na reivindicação e defesa do lugar do engenheiro na sociedade moderna. Vejam-se os números e a esmagadora proporção dos novos sócios da AECP saídos do IST8 que vão, de resto, renovar a própria direcção da Associação.
A AECP fervilha de actividade. Em 1930, para além da regulamentação do exercício da profissão e da instalação da sede, inscreve-se na agenda de prioridades a realização do reiteradamente evocado Congresso Nacional de Engenharia, projectando-o acompanhado de uma exposição sobre a engenharia em Portugal. Animados pelas reacções positivas às iniciativas propostas, a convicção dos responsáveis pela AECP é a de que se está no início de uma nova era para a nossa classe9.
Optimismo que nem mesmo a ausência de resultados imediatos quanto às questões fulcrais ensombrou ou esbateu. Até porque existia a promessa do Ministro do Comércio de que o assunto, da Ordem, ficaria arrumado antes do nosso Congresso, e é com o maior prazer que vos transmitimos esta promessa10.
A par de tudo isso, e desses assuntos principais, desdobraram-se os engenheiros em procurar valer os nossos direitos, assegurando a nossa representação em comissões oficiais e defendendo quer os interesses da nossa classe, quer interessando-nos em assuntos de carácter nacional relacionais com a nossa profissão. Para tanto, foram mais de dez as representações apresentadas ao longo do ano. Destaquem-se as dirigidas ao ministro do Comércio relativamente à regulamentação do exercício da profissão e à rede eléctrica nacional; ao ministro das Colónias, sobre a aplicação às colónias do tratado que regula o uso do título de engenheiro, e ao ministro da Instrução, sobre a criação da Universidade Técnica11.
Mas, enquanto a reacção do Governo tardava no que se refere à almejada criação da Ordem dos Engenheiros, realizou-se o I Congresso Nacional de Engenharia, cumprindo finalmente uma velha aspiração da nossa classe12.
Ideia antiga, com mais de vinte anos, o Congresso tinha sido retomado como prioridade pela direcção da AECP em 1930.
Absorvendo parte da concepção passada, projecta-se um congresso ambicioso na forma, no conteúdo e, acima de tudo, nos objectivos. Em parte, o que acontece vem na linha do mote lançado anos antes pelo então secretário-geral do Congresso José Vasco de Carvalho, na evocação de um espírito de emulação que derivava do simples e básico pressuposto: sendo portanto tão vasto e por tal forma importante o campo de acção do engenheiro nas sociedades modernas, é indispensável que entre nós o engenheiro se integre nesta corrente, deixe de exercer uma actividade produtiva na mais apagada obscuridade em que a tem exercido e passe a exercê-la com conhecimento e aplauso geral da nação; é necessário interessar toda a nação nas grandes obras de fomento e de engenharia desviando a sua atenção das prejudiciais preocupações da baixa política para os importantes problemas da produção. Esses problemas, sérios, doravante têm de ser estudados, discutidos e apresentados perante a nação pelos competentes (…) por engenheiros13. Por isso, a realização do Congresso e a ambição que então envolvia o elenco de objectivos apontados em 1927:
- Melhorar as condições morais e materiais do engenheiro;
- Desenvolver e elevar o culto da profissão;
- Promover o desenvolvimento da ciência e da técnica;
- Estudar a situação económica da Nação e marcar as directrizes da sua rápida evolução e debater os principais problemas de fomento, apontando ao Estado as soluções mais convenientes e interessando a Nação na sua resolução;
- Fornecer aos organismos produtores os ensinamentos adequados para a intensificação da produção14.
O final dos anos 20 parece, a todos os títulos, ter coincidido com um dos momentos em que a campanha em nome da engenharia e dos engenheiros em Portugal assumiu maior intensidade ou, pelo menos, um discurso mais empolgado.
Quando em 1930 a iniciativa do Congresso foi retomada e, desta feita, concretizada, a apresentação e os objectivos apontados assumiram um tom
 bastante mais moderado: Destina-se a discutir os problemas de carácter técnico-económico que interessam a Portugal, a mostrar a vitalidade e o trabalho da Engenharia Portuguesa e a desenvolver e elevar o culto da profissão do Engenheiro15.
De qualquer forma, sublinhe-se o significado da iniciativa, que mobilizou a participação de toda a engenharia nacional em torno do objectivo de consagrada em letra de lei a definição de engenheiro diplomado por escolas de ensino superior de engenharia. Organizado pela AECP, o Congresso contava com a colaboração da Associação dos Engenheiros Civis do Norte de Portugal, do IST, da FEUP e dos Cursos de Engenharia da Escola Militar. Além disso, mantinha-se a “cruzada” fundamental e até a ambição espelhada na magnitude da equipa organizativa do Congresso, que contava, na sua Comissão Executiva, com um outro secretário-geral, o então jovem engenheiro Ferreira Dias.
Os engenheiros mobilizaram-se e concertaram esforços – pelo menos os “entusiastas”, no reconhecimento a assinalar de não representarem o pleno dos engenheiros: Sob o ponto de vista da forma como encaram o Congresso, os Engenheiros dividem-se em três categorias: os entusiastas, os indiferentes e os cépticos. (...) Os primeiros são os que têm fé; os segundos os que a têm mas não a usam; os terceiros os que a não têm, (…)16.
Retomemos, portanto, a iniciativa que pertenceu aos mais crentes, conduzidos por esse espírito voluntarista e crédulo, próprio daqueles que anseiam “mudar o mundo” ou, nas circunstâncias, pelo menos o curso económico do País. Com a coragem que a convicção das virtudes próprias acende, o Congresso pretendia mostrar que os Engenheiros portugueses sabem o que é preciso fazer e como se deve fazer o que está sob a alçada da sua competência17.
Em 8 de Junho de 1931 realizou-se, então, na Sociedade de Geografia de Lisboa, a sessão inaugural do I Congresso Nacional de Engenharia. Tratou-se, sem dúvida, de um momento alto da história do pensamento sobre a economia portuguesa dos primeiros tempos do que veio a ficar institucionalizado como Estado Novo.
Momento de afirmação pública do engenheiro, quer individualmente como protagonista, quer como classe, inegavelmente audível em todos os campos, incluindo o político.
Legitimação, consagração pública, assumpção clara de um estatuto próprio na sociedade.
Elite, mais do que tecnológica. Percursores do futuro que projectam e vislumbram como o melhor para o País, até porque a obra feita, a engenharia nacional, é a prova mais evidente e palpável das suas virtudes e capacidades empreendedoras materializadas em obra feita.
Entretanto, o ano de 1931 chegou ao fim, sem que outras aspirações fossem concretizadas. Nomeadamente a questão, a mais importante, da regulamentação da profissão e subsequente criação da Ordem dos Engenheiros. Nessa matéria os engenheiros viram os seus esforços baldados, não obstante as promessas do Sr. Ministro do Comércio….18 O impasse prolongar-se-ia, bastante para além das expectativas. Em 1932, nada de novo do Ministério, apesar dos esforços envidados pela Direcção da AECP que incluíram até, no sentido de apressar a resolução deste assunto, o pedido de audiências ao Presidente da República e ao Presidente do Ministério e repetidas conferências com o ministro do Comércio e Comunicações19.
As insistências acabaram, todavia, por suscitar a preparação de uma consulta do Ministério do Comércio e Comunicações dirigida às associações de engenheiros, arquitectos e condutores e, entre outros organismos, também às Associações comerciais e industriais e a Câmaras Municipais, sobre um projecto de regulamentação das profissões de engenheiro, arquitecto e condutor20.
O projecto foi apreciado no âmbito da AECP, por uma comissão composta pelos sócios engenheiros Cancela de Abreu, Cassiano Maria de Oliveira e José Nascimento Ferreira Dias Júnior. Ao tom discordante da Comissão e, a partir dela da AECP somou-se em breve a voz da delegação que a Associação dos Engenheiros Civis do Norte de Portugal entendeu nomear: os engenheiros Flávio Pais, A. Ferreira do Amaral e Ezequiel de Campos.
O parecer, discordante, foi feito e apresentado, conjuntamente pelas duas associações; mas, entretanto, o Ministério do Comércio foi desdobrado nos dois Ministérios, de Obras Públicas e Comunicações e do Comércio, Indústria e Agricultura: o Regulamento que vinha sendo pedido entrou novamente em situação de impasse.
Porém, em 1934, a AECP, sob Direcção recentemente eleita e presidida pelo engenheiro António de Almeida de Vasconcelos Correia, antecipando-se à indispensável acção do Governo, tomou a decisão da criação da Ordem dos Engenheiros, em reunião da Assembleia Geral realizada em Maio21. E acrescentava:
2.º - Que as especialidades de Engenharia a incluir na Ordem devem ser somente as que correspondem às professadas no Instituto Superior Técnico, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e Escola Militar;
3.º - Que a inscrição da Ordem seja obrigatória, devendo contudo admitir-se a possibilidade da dispensa temporária dos encargos da Ordem, a requerimento do interessado, desde que prove que não exerce a profissão;
4.º - Que o Conselho Directivo da Ordem deve ser constituído por uma parte eleita pela Assembleia Geral (Presidente, Vice-Presidente, Tesoureiro e Secretário) e um representante de cada especialidade, todos eleitos anualmente22.
De resto, a Associação ainda tinha tomado a iniciativa de apresentar um parecer (…) sobre um projecto do estatuto profissional, que tinha sido remetido ao subsecretário de Estado das Corporações por um grupo de engenheiros, que simultaneamente requeria a constituição de um sindicato nacional sob a designação de “Ordem dos Engenheiros23.
Manifestada a concordância quanto à constituição de uma Ordem sob a orgânica corporativa do Estado Novo, foi então, já sob o mandato da direcção presidida pelo engenheiro Vasconcelos Correia, preparado um projecto de estatuto24, ficando entretanto, por exposição dirigida ao subsecretário de Estado das Corporações, desde logo clara a posição da AECP que não deverão fazer parte dessa Ordem senão os diplomados das especialidades professadas no Instituto Superior Técnico, na Faculdade Técnica da Universidade do Porto e na Escola Militar25. Ou, por outras palavras, não há, na separação que se pretende fazer, a mínima intenção desprimorosa para os que possuem legalmente o título de engenheiro de outras especialidades, como por exemplo os engenheiros agrónomos, os engenheiros silvicultores ou outros. Há apenas nesta resolução o desejo de não agrupar, forçosamente, no mesmo labor social, elementos heterogéneos com preparação científica e orientação técnica diferentes26.
Apontado ficou também o entendimento da AECP quanto ao que considerava distinguir a Ordem do Sindicato Nacional no quadro vulgar da orgânica corporativa: Enquanto o Sindicato tem por fim essencial a defesa dos interesses materiais dos que voluntariamente se associarem, à Ordem, se for criada, competirá, além disso, desempenhar uma função de natureza disciplinar, velando pela moralidade da profissão e impondo a obrigatoriedade de inscrição dos que estão em condições de ser sócios, apenas com algumas restrições que a já referida Assembleia Geral (da AECP) indicou. (…) Nessa Ordem, como é lógico e já obrigatório para os Sindicatos, não deverão associar-se elementos profissionais diferentes.
A exposição era longa e em breve seria completada, no respeitante à organização e missão da Ordem desejada, pelo Projecto de Estatuto Profissional dos Engenheiros proposto pela AECP.
Em tudo ficaria inscrita, sumariamente explicitada e necessariamente justificada uma das principais e das mais melindrosas funções atribuídas a uma Ordem – a de velar pelo prestígio da profissão dos seus filiados e pelo seu nível moral – implicando naturalmente uma delicada acção disciplinar…27
A resposta do Governo tardou, até porque requeria o parecer do Conselho Corporativo.
Finalmente, o decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 193428, regulamentando a Câmara Corporativa, indicava a solução encontrada, prevendo a representação da “Ordem dos Engenheiros” e dos “Sindicatos dos Engenheiros Agrónomos e Silvicultores”.
Ficava assim satisfeita a reivindicação essencial da AECP: a Ordem que se criasse compreenderia apenas as especialidades de engenharia correspondentes ou equivalentes às professadas nas escolas superiores de engenharia portuguesas.
Começara entretanto o ano de 1935. Logo em Janeiro, a AECP comprava o edifício destinado à instalação da sua nova sede deixando o voto de que o novo lar da Engenharia Portuguesa constitua o símbolo, por todos respeitado, da mais completa união e da mais perfeita harmonia entre quantos a essa classe pertençam29.
A transferência da sede da Associação para avenida António Augusto de Aguiar envolveu importantes obras de adaptação projectadas em boa parte pelo arquitecto Vasco Regaleira. Finalmente, em 29 de Janeiro de 1936 inaugurou-se oficialmente a nova sede com a sessão da Assembleia-geral extraordinária30 destinada a apreciar o projecto do Estatuto da Ordem dos Engenheiros que a Direcção preparou31.
O desfecho seria por fim encontrado com a publicação do decreto-lei n.º 27 288, de 24 de Novembro de 193632, que criava o Sindicato Nacional dos Engenheiros com o nome de Ordem dos Engenheiros, dando finalmente satisfação à velha aspiração dos engenheiros da AECP. O regozijo foi grande entre os engenheiros, sobretudo pelo que o diploma dispunha no respeitante ao estatuto da profissão de engenheiro e à nova função disciplinar atribuída à associação dos engenheiros. A Ordem recém-criada integrava-se na organização corporativa do
Estado Novo, e, consequentemente, passou a deter também um papel político. Os sócios da AECP transitaram para o novo organismo, de inscrição obrigatória para todos os indivíduos habilitados legalmente ao exercício, em Portugal, da profissão de Engenheiro.
Menos compreensível, o facto da criação da Ordem, não tendo seguramente passado despercebido, ter tido pouco relevo nas notícias veiculadas pela imprensa da época e até nas revistas da especialidade.
O evento foi sumariamente noticiado no Jornal do Comércio33, na rubrica “Trabalho & Corporações”, no Diário da Manhã34.
Ainda mais estranho foi a notícia não ter surgido na Técnica, nem ter tido eco que se note na Indústria Portuguesa ou na Indústria do Norte. Claro que, pelo contrário, surgiu com destaque na Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, que publica o diploma da criação.
Ainda em 1936 ficaria resolvido o problema da AECP. Depois de estudos detalhados pareceu à Direcção que o mais aconselhável seria a suspensão de toda a actividade social, ficando sempre previsto o regresso à actividade normal quando as circunstâncias o aconselharem35.
Já instalados, em sede própria e renovada, 1937 passaria a constituir outro marco nesta história, com o início da publicação do Boletim da Ordem dos Engenheiros. Nas palavras do primeiro presidente do Conselho Directivo da Ordem, engenheiro António de Almeida Vasconcelos Correia, o aparecimento deste Boletim é a primeira manifestação do exercício da função cultural que incumbe à Ordem dos Engenheiros, recentemente criada36. O Boletim era apresentado reivindicando o passado de mais de 65 anos que a revista da
Associação dos Engenheiros Civis Portugueses deixava como legado. Passado prestigiado de uma classe profissional transcrita em publicação continuada e garantida: Estamos certos de que todos os inscritos na Ordem se compenetrarão da conveniência que haverá, para a manutenção do bom conceito em que é tida a engenharia portuguesa, de que a nova publicação corresponda às honrosas tradições das suas antecessoras e ao alto nível profissional que a todos incumbe zelar37.
Restava ainda uma peça essencial neste processo mais formal de criação da Ordem e da sua imagem institucional: o emblema que a devia identificar. Nesse sentido, foi aberto concurso entre engenheiros membros da Ordem e alguns artistas para o desenho do emblema da Ordem dos Engenheiros.
Mas os trabalhos apresentados não satisfizeram o júri do concurso, tendo sido então resolvido convidar um artista de reconhecido mérito para elaborar o desenho do emblema, que ainda não nos foi apresentado38.
O artista escolhido, sem dúvida de nomeada, foi Cottinelli Telmo, que em breve entregaria o desenho do que ainda hoje é o emblema da Ordem dos Engenheiros39.

Bibliografia
  • “A Origem e os objectivos da Ordem dos Engenheiros” in Revista da Ordem dos Engenheiros, Ano VIII, n.º 81, Setembro de 1950, p.399-403.
  • “Ordem dos Engenheiros” in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, Ano LXVII, n.º 738, Dezembro de 1936, pp.455-462.
  • Boletim da Ordem dos Engenheiros
  • Boletim do Grémio Técnico Português
  • Brito, José Maria Brandão de, “Os Engenheiros e o Pensamento Económico do Estado Novo” in A.A.V.V., Contribuições para a História do Pensamento Económico em Portugal, “Universidade Moderna, 84”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988, pp. 211-234.
  • Brito, José Maria Brandão de, A Industrialização Portuguesa no Pós-Guerra (1948-1965). O Condicionamento Industrial, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989.
  • Diogo, Maria Paula Pires dos Santos, A construção de uma identidade profi ssional. A Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (1869-1937), Dissertação de doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Lisboa, 1994, policopiado.
  • Engenho e Obra. Uma abordagem à História da Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002.
  • Ingenium
  • Lemos, Manuel Aboim Sande, “A Criação da Ordem dos Engenheiros” in Ingenium - Revista da Ordem dos Engenheiros, n.º 1 de Junho de 1986, pp.13-22.
  • Momentos da Inovação e Engenharia em Portugal no Século XX, 3 vols., coord. de J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004.
  • Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses
  • Revista da Faculdade de Engenharia
  • Revista da Ordem dos Engenheiros
  • Revista de Obras Públicas e Minas
  • Rollo, Maria Fernanda, “Percursos Cruzados”, in Engenho e Obra. Uma abordagem à História da Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002.
  • Técnica

1 J. V. Duro Sequeira, “As funções do engenheiro na indústria moderna”, in Revista de Obras Públicas e Minas, n.º 6312, Dezembro de 1924.
2 Idem.
3 José Mendes Leal, “A moderna função social do engenheiro (Conferência realizada na Associação dos Engenheiros, em 10 de Janeiro de 1927)”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 639, de Janeiro-Fevereiro de 1927, pp.15-22.
4 “Congresso Nacional de Engenharia”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 643, de Novembro-Dezembro de 1927, pp.201-203.
5 José de Araújo Correia, “O ensino superior técnico nos países anglo-saxónicos – e sua relação com a moderna função social do engenheiro”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 640, Março-Julho de 1927, p. 55.
6 J. E. Dias da Costa, “O título de engenheiro. Sur hermenêutica jurídica. Seu significado social”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 649, de Novembro-Dezembro de 1928, p. 223.
7 “Vida Associativa”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 656, Janeiro-Fevereiro de 1930, p. 32.
8 Entre 1931 e 1934 mais de 70% dos novos sócios da AECP são diplomados pelo IST; além disso muitos assumem lugares na direcção da Associação, a começar pelo próprio Ferreira Dias.
9 “Vida Associativa”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 669, Março de 1931, p. 106.
10 “Vida Associativa”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 669, Março de 1931, p. 106.
11 Idem, p. 107.
12 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo à Gerência de 1931”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 680, Fevereiro de 1932, pp. 60-70.
13 “Congresso Nacional de Engenharia”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 643, de Novembro-Dezembro de 1927, p.203.
14 Idem.
15 1.º Congresso Nacional de Engenharia, Lisboa – 1931. Relatório, Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1931, p. 25.
16 “1.º Congresso Nacional de Engenharia. Algumas palavras” in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, Ano LXI, n.º 658, de Abril de 1930, p.82.
17 Idem.
18 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo à Gerência de 1931”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 680, Fevereiro de 1932, p. 62.
19 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1932”, Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 693, Março de 1933, p. 122.
20 Idem.
21 “Vida Associativa”, in Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 708, Junho de 1934, p. 243.
22 Idem.
23 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1934”, Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 717, Março de 1935, pp. 113-131.
24 Projecto de Estatuto Profissional dos Engenheiros. Ordem dos Engenheiros, Lisboa, 1934.
25 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1934”, Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 717, Março de 1935, p. 119.
26 Idem, p. 120.
27 Idem, p. 121.
28 Diário do Governo, I Série, n.º 279.
29 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1935”, Revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, n.º 729, Março de 1936, p. 130.
30 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1936”, in Boletim da Ordem dos Engenheiros, p. 332.
31 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1936”, in Boletim da Ordem dos Engenheiros, pp. 332-341.
32 Suplemento ao Diário do Governo, I Série, de 24 de Novembro de 1936.
33 Jornal do Comércio, n.º 24 911, de 28 de Novembro de 1936.
34 Diário da Manhã, n.º 2015, de 26 de Novembro de 1936, p. 2.
35 “Relatório da Direcção da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, relativo ao ano de 1936”, in Boletim da Ordem dos Engenheiros, pp. 332-341.
36 António de Vasconcelos Correia, “Boletim da Ordem dos Engenheiros”, in Boletim da Ordem dos Engenheiros, Ano I, n.º 1, Janeiro de 1937, p. 1.
37 Idem, p. 3.
38 Relatório do Conselho Directivo da Ordem dos Engenheiros, relativo ao ano de 1937, Papelaria Fernandes, Lisboa, p. 15.
39 Arquivo da Ordem dos Engenheiros - Correspondência Expedida Julho a Dezembro de 1937, carta da Ordem dos Engenheiros a Cottinelli Telmo de 18 de Agosto de 1937.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 92 -Março/Abril de 2006

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