fechar
Acessibilidade (0)
A A A

Escolha o idioma

pt
5898a80e56233bb2a3e7d468b7e5cd1e.jpg

1888: primeiro projecto de um metropolitano para Lisboa



Há mais de 50 anos que a cidade de Lisboa possui um metropolitano e que os seus habitantes, e todos os que a procuram, usufruem da mobilidade que propicia: vivemos com o Metro, beneficiamos do seu serviço de transporte e, periodicamente, a cada novo alargamento vamos suportando o incómodo das obras que esventram a cidade e à superfície perturbam, mais ou menos seriamente, o nosso dia a dia. A verdade é que numa Metrópole como Lisboa já nem seríamos capazes de viver sem esse fundamental e estruturador meio de transporte que, aliás, desde as suas origens mais remotas tem estado associado à nossa engenharia e faz parte integrante da sua história.

E, no entanto, como todos os grandes empreendimentos, antes de tomar forma, foi ideia e utopia. Foi polémico, e desencadeou debates e paixões.

Corriam os agitados tempos da Monarquia Constitucional quando, no reinado de D. Luís, surgiu precocemente proposto em 1885 a primeira ideia de construir um caminho de ferro metropolitano em Lisboa.

No Mundo, poucas eram as cidades que já dispunham desse novo meio de transporte colectivo: Londres, pioneira, dera-lhe o nome e inaugurara-o em 1863, seguiram-se Budapeste em 1896 e Glasgow em 1897, Nova Iorque dispunha de um metropolitano de superfície desde 1868, enquanto Paris, em fase de projectos e discussões, aguardaria pelo ano de 1898 para dar início à sua construção.

A primeira sugestão para construir um metropolitano de Lisboa pertenceu aos engenheiros Costa Lima e Benjamim Cabral.
No entanto, e para além do anúncio da intenção de traçar uma linha que ligasse Santa Apolónia a Algés, passando pelo Rossio, R. de S. Bento, Janelas Verdes e Alcântara, estimando o custo do empreendimento em 500$000 reis por metro corrente de túnel, os seus proponentes não levaram mais longe a sua proposta.1

Mas não foi preciso esperar muito tempo para que surgisse um primeiro esboço de metropolitano para a cidade, já com indicação de um sistema de linhas. Era seu autor o engenheiro militar Henrique de Lima e Cunha, que apresentou o seu projecto em 5 de Maio de 1888 numa comunicação feita à Associação dos Engenheiros Civis Portugueses intitulada “Esboço de Traçado de um Caminho de Ferro Metropolitano em Lisboa”2.

Recordem-se, a propósito, duas questões.

Uma, tem a ver com a criação do Corpo de Engenharia Civil e Auxiliares (1864) e os acontecimentos que levaram à constituição da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses em 1869: a primeira associação profissional de engenheiros criada em Portugal. De reter, a oportunidade da criação do Corpo de Engenharia Civil no contexto de uma vontade de modernização do País, embora em boa medida traduzida na construção dos caminhos de ferro e obras públicas, mas com reflexos importantes na gestação de um ambiente propício ao desenvolvimento da engenharia em Portugal.
Sublinhe-se ainda a importância desta Associação, tal como a sua herdeira Ordem dos Engenheiros, enquanto espaço de divulgação, plataforma de formação e de importação de conhecimentos - pela sua internacionalização e contactos com associações estrangeiras congéneres, pelo corpo bibliográfico que passou a reunir, pela Revista de Obras Públicas e Minas, que publicou durante vários anos.

Segunda ideia, para dar nota da importância visível que os engenheiros vinham tendo em diversas áreas da sociedade portuguesa.

Assumindo uma crescente intervenção na esfera política e participação na definição e condução das políticas de desenvolvimento do País, a sua presença é notória um pouco por todo o lado - fruto do reconhecimento da sua indispensabilidade como agentes da inovação tecnológica necessária ao desenvolvimento. Engenheiros que, intervenientes destacados em áreas da especialidade, eram em boa parte, porém, formados no estrangeiro. É, aliás, sabido como só tardiamente se começou a ministrar em Portugal um ensino de engenharia fora do âmbito da engenharia militar. Até então, o escol de engenheiros portugueses que se afirma, especialmente nas áreas da engenharia civil e de minas, mas também no campos da agronomia e das florestas, adquiriu a sua aprendizagem no estrangeiro, sobretudo em instituições francesas e alemãs.

Por outro lado, são os próprios engenheiros que adquirem progressiva consciência da indispensabilidade da sua participação activa na esfera nacional e que procuram encontrar uma plataforma específica de afirmação da sua especificidade e simultaneamente a sua autonomização relativamente à esfera militar.

Em qualquer caso, a sua presença era cada vez mais sentida na construção e desenvolvimento de infra-estruturas (pontes, estradas, caminho de ferro, portos…), no reconhecimento do território, e mesmo em actividades industriais.

Plano geral da cidade por Ressano Garcia

Além disso, signatários de projectos e autores de estudos técnicos, reclamam-se promotores de estratégias e agentes do progresso do País. E, efectivamente, como exemplo, foram os engenheiros, sobretudo eles, como já assinalámos, os primeiros a querer construir, em tempos precoces, um metropolitano em Lisboa. Certamente, foram inúmeros os projectos, propostas mais ou menos ousadas, algumas ingénuas outras sem viabilidade, que ficaram por realizar, porque o optimismo e voluntarismo que os guiava nem sempre se fez acompanhar do realismo indispensável ou porque, na verdade, o País não possuía as condições necessárias à sua concretização.

Até porque, para além do acentuado clima de instabilidade política e financeira que ameaçava instalar-se duradouramente, não era claro o curso que haveria de presidir à condução dos destinos do desenvolvimento económico do País. Em todos estes campos o metro constituiu um bom exemplo.

Mas retomemos a proposta de Lima e Cunha. É larga a sua argumentação e minuciosa a apresentação que faz do projecto.
Em síntese, Lima e Cunha defende que na evolução natural dos meios de transporte urbanos se inscreviam então uns novos caminhos de ferro metropolitanos, onde as locomotivas correm ora em viadutos sobranceiros às ruas, ora em extensos túneis3, a exemplo do que acontecia em algumas grandes capitais como Londres e Nova Iorque.

Embora não demonstre grande optimismo quanto a um crescimento rápido da população e da área citadina, Lima e Cunha considerava que a nossa capital só poderia tornar-se numa metrópole progressiva se fossem criadas infra-estruturas, nomeadamente de transportes, que lhe permitissem expandir-se e transformar-se num grande centro económico: a construção de um caminho de ferro metropolitano seria indispensável e deveria até preceder o desenvolvimento material da cidade, ao qual serviria de instrumento4. Em sua opinião, as então existentes linhas de tramways, sobretudo pela dificuldade com que naturalmente se debatiam quando se encarava a possibilidade de expansão para zonas mais acidentadas da cidade, nunca poderiam resolver cabalmente o problema da circulação dentro da cidade.

Os tramways, explorados pela Carris desde 1873, eram por essa altura o meio de transporte mais procurado na cidade. Todavia, a sua utilização não era de forma alguma satisfatória. De resto, à época, a procura de transporte na cidade era francamente modesta.
Esta Lisboa de 1888, tendo perto de 300 mil habitantes, estava a sentir os efeitos de uma dupla “revolução”: a urbanística, que a afastava inexoravelmente do Tejo, do seu núcleo central medievo e pombalino, e a que, simultaneamente, começava a dar forma a um conjunto de infra-estruturas modernizantes.

Nesse quase final de século, quando muita gente ainda receava o caminho de ferro e alguns davam vivas à locomotiva que os levava a Sintra e a outros pontos do País, era ainda relativamente recente a instalação do primeiro serviço público de transportes urbanos em Lisboa5.

A proposta que Lima e Cunha pôs à discussão naquela histórica sessão da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, correspondendo à primeira fase de um projecto mais ambicioso, era de formulação simples: Limitemo-nos por ora a planear o metropolitano que, em Lisboa, servisse a área onde a população se acha mais concentrada e é a de um quadrilátero, cujos ângulos se acham situados nos seguintes pontos: Estação de Alcântara; largo do Rato; largo do Intendente, e estação dos Cais dos Soldados [Santa Apolónia]6, considerando a possibilidade de exceder os limites marcados por forma a encontrar a linha de Cascais 1 km a oeste de Alcântara7.

A linha proposta era pontuada por 14 estações, das quais 7 dispunham de elevadores verticais, podendo ser percorrida em vinte minutos, incluindo as paragens nas doze estações intermédias, e para os comboios expressos, parando só em algumas estações, o trajecto total duraria apenas quinze minutos, sendo a velocidade real de 30 kilómetros por hora 8.

No cômputo geral, o percurso, assim concebido, ficaria com uma extensão total de 4,953 km e adoptaria o sistema misto, pois o metropolitano de Lisboa deveria transitar quer por túnel (exactamente quatro túneis - Lapa, Estrela, Bairro Alto e Castelo - abrangendo 2,835 km) quer à superfície, em viaduto metálico, ligando entre si as principais freguesias e centros populosos da cidade 9.

Apresentando vários quadros - traçado em planta das curvas e em perfil das rampas e das descidas, túneis, viadutos e estações, Henrique Lima e Cunha não se esquece do custo total da obra, que em sua opinião deveria orçar 1 milhão e quinhentos mil reis (estimando em 200$000 reis o metro corrente de via dupla para os túneis).

O projecto não teve sequência. Vale pelo seu carácter pioneiro e pela visão prospectiva que o seu autor demonstra: o progresso da urbe, o seu desenvolvimento económico e social dependia então da existência de infra-estruturas de transportes que permitissem retirar o carácter de semi-ilhas que afinal assumiam as várias freguesias e bairros de Lisboa no final do século passado.

A cidade vivia então períodos agitados, pouco propícios a grandes empreendimentos.

No entanto, em Lisboa já circulavam os eléctricos da Carris, que em 1895 pedira à Câmara Municipal de Lisboa licença para substituir a tracção animal por tracção eléctrica. O pedido de adaptar as linhas da sua concessão à tracção eléctrica por condutor aéreo, viria a ser concedido e consubstanciado nos contratos de 1897 e 1898, em que lhe foi reconhecido o privilégio exclusivo do “sistema electrificado por condutores aéreos com motor”, a instalar nas linhas das suas concessões e em 26 km de novas linhas, tendo ambos os contratos recebido aprovação governamental. Alfredo da Silva, obrigacionista da Carris, por herança, e director da Companhia entre 1896 e 1899, com Carlos Krus e Zófimo Consiglieri Pedroso, tinham sido os principais obreiros desta transformação. Em breve começariam os trabalhos de assentamento das vias, que a Lisbon Electric Tramways, empresa de capitais britânicos a quem a Carris arrendara as linhas, adjudicara à Portuguese Construction Company. Por fim, na madrugada de 31 de Agosto de 1901 o primeiro eléctrico percorria o trajecto Terreiro do Paço a Belém e Algés.
A ideia de construir um metropolitano parecia esquecida no torvelinho de acontecimentos que se sucediam com um ritmo dramático. Só um quarto de século após a formulação do engenheiro Lima e Cunha surgiram novos elementos a provar que, afinal, a ideia do metro alfacinha estava apenas adormecida.

Na verdade, ao primeiro projecto português outros se seguiram, brotando com intensidade e ritmo variáveis, atravessando as conjunturas políticas e económicas da Monarquia, da I República ou da implantação do Estado Novo. Outras propostas, outros projectos, com configurações e objectivos diferenciados, não sendo muito evoluídos do ponto de vista das especificações técnicas nem se preocupando demasiado com primores económicos, quase todos sem condições de êxito à partida.

Por fim, perante a imprescindibilidade de chegar a uma solução para o cada vez mais complexo problema do metropolitano, a Câmara Municipal de Lisboa chamou a si a resolução do problema e promoveu a constituição de uma sociedade de estudo composta pela Câmara, pela Carris e por outros interesses privados que, depois de avaliadas as possibilidades do empreendimento, se transformaria na empresa à qual foi atribuída, em 1949, a concessão para instalar e explorar, em regime de exclusivo, um sistema de transporte colectivo fundado no aproveitamento do subsolo da cidade.

1 Cf. Henrique de Lima e Cunha, “Esboço de Traçado de um Caminho de Ferro Metropolitano em Lisboa”, in Revista de Obras Públicas e Minas, Tomo XIX, n.os 223 e 224, Julho e Agosto de 1888, p. 269.
2 Henrique de Lima e Cunha, “Esboço de Traçado de um Caminho de Ferro Metropolitano em Lisboa”, in Revista de Obras Públicas e Minas, Tomo XIX, n.os 223 e 224, Julho e Agosto de 1888, pp. 262-269.
3 Idem, p. 262.
4 Idem, p. 267.
5 Datada de 1834, quando por Decreto de 7 de Agosto foi concedido a Aristides Feury e a Luís Castinel o privilégio de constituir um sistema de carruagens públicas, os “ómnibus”. Outras companhias de transportes públicos formaram-se entretanto, por vezes mais dedicadas ao tráfego suburbano do que propriamente ao serviço do interior da cidade. Todos acabariam em breves anos por se render à Carris que, tendo em 1876 fixado a sua sede em Lisboa, viria a adquirir as demais companhias até 1892 (exceptuando os dois operadores, marginais, Lusitana e Empresa Eduardo Jorge), passando a assegurar o controle da rede de transportes públicos da capital. No seu total, entre 1870 e início da década de 90 tinham existido na cidade 15 companhias de ómnibus e 1 companhia de tramways, a Carris.
6 Lima e Cunha, art. cit., p. 264.
7 Cf. idem, p. 264.
8 Idem, p. 267.
9 Ibidem.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 90 - Novembro/Dezembro de 2005

Parceiros Institucionais