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Viva a República! Há 99 anos, a implantação da República em Portugal


A implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, culminou um processo que remonta ao final do século XIX e, em especial, aos seus últimos anos; período de condensação de um contexto de crise multifacetada em que se inscreveu o colapso da Monarquia constitucional e o rasgo do caminho, de certa forma inexorável, que conduziu à República.

Recordem-se os acontecimentos em torno do Ultimatum britânico, a onda de agitação que provocou e as sequelas que desencadeou, e a revolta republicana no Porto, a 31 de Janeiro de 1891, marcando o percurso que, a prazo, pôs termo ao primeiro liberalismo português. Cenário de crise global, em que os republicanos encontraram a recta final do trajecto que conduziu à tomada do poder.

A par da instante crise política, o generalizado mal-estar social, a crise económica e, com grande fragor, a derrocada financeira, compuseram esse quadro de catástrofe que os escritores finisseculares pressentiam e denunciavam impiedosamente. Tempo de passagem do século, tom propício à dramatização da ideia de crise e decadência, tal como ficou imortalizada na ficção de Eça de Queirós, que morreu precisamente em 1900, Teixeira de Queirós e Fialho de Almeida, ou na poesia de Guerra Junqueiro e António Nobre (também morto em 1900).

Retratos do país, feitos de testemunhos de desencanto, manifestos do espírito descrente e pessimista que entristeceu a Pátria. A par do tom negativista e derrotista, surgia, de forma cada vez mais estridente,  a crítica incisiva da sociedade burguesa finissecular que Abel Botelho denunciava em Amanhã (1901) ou, noutro palco, a caracterização feita por Oliveira Martins em Portugal Contemporâneo. Combinando com o tom de pessimismo decadentista, o contexto era propício ao descrédito, indelevelmente marcado pelo carácter inusitado e dramático do Ultimatum apresentado pelo Governo inglês de Lord Salisbury, fazendo jus à sonoridade trágica de A Portuguesa ou, entre outros textos, ao ritmo comovente de Finis Patriae de Junqueiro.
Tudo isso animava a vontade regeneradora e as aspirações republicanas, procurando a interrupção e a alternativa ao percurso decadentista de que a monarquia surgia indissociável. Ao recém-criado Partido Republicano Português (1876), entre os demais defensores de uma solução política republicana, aliavam-se cada vez mais descontentes,  engrossando as fileiras do movimento republicano, num tom de crescente nacionalismo, aglutinando um conjunto alargado de pretensões, almejando, entre outras, a libertação da tutela estrangeira, a democratização política, a generalização do sistema escolar, a modernização económica e social.

Na verdade, para lá do impasse político, o modelo de desenvolvimento económico da Regeneração vinha revelando sinais de esgotamento, desembocando na profunda crise económica e financeira que assolou o país em 1890/1891.
O modelo económico da Regeneração, face às limitações do seu próprio enunciado, confrontava-se com as hesitações e as inércias da actividade económica de um país que, afinal, tardava em dar resposta aos desafios e às possibilidades da moderna expansão industrial e, em comparação com a situação internacional, entrara claramente em derrapagem. Portugal debatia-se à procura do seu ressurgimento, confrontado com as expectativas falhadas e sob o trauma e a ameaça da bancarrota. O dinamismo que a política fontista imprimiu à construção de grandes infra-estruturas, embora tendo efeitos positivos, mas insuficientes até para a unificação do mercado interno, foi feito em grande medida através do recurso constante ao aumento da dívida pública interna e externa e ao défice orçamental, o que, associando-se à deficitária balança comercial portuguesa, acabou por arrastar a economia para uma difícil situação financeira, colocando-a sob a perspectiva de uma falência generalizada.
É certo, porém, que o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial registou um crescimento razoável do sector industrial, tal como aconteceu com a maioria das economias europeias mais atrasadas, mas circunscrito e longe de conseguir catapultar Portugal para o nível dos países industrializados da Europa. Globalmente,  o País falhou em encetar um processo de industrialização e modernização económica e social semelhante ao que caracterizava os países europeus mais desenvolvidos,  mantendo taxas de crescimento muitíssimo modestas, ao nível das mais baixas registadas pelos países europeus ao longo de todo o período entre 1870 e 1913.

A verdade é que os vários governos da fase final da Monarquia, a braços com sucessivas crises políticas e financeiras, estavam praticamente paralisados: não tinham condições, nem meios, para definir uma estratégia de desenvolvimento económico nacional, nem conseguiam reunir, por isso, os meios indispensáveis à sua concretização. A tudo isso somavam os efeitos da indefinição quanto ao percurso que devia presidir à condução dos destinos do desenvolvimento económico do país, e ampliava-se o debate que opunha, em termos de ideias, duas concepções contraditórias, que defendiam caminhos diferentes, assentes na promoção da industrialização ou na primazia do quadro agrícola.

O final de oitocentos mostraria os limites do percurso desenhado. A difícil situação financeira em que o fontismo tinha deixado o país agravou-se num cenário de crise a que não foi estranha a situação internacional e, em particular, a crise cambial brasileira e a decorrente contracção das remessas dos emigrantes que permitiam compensar significativamente o quadro tradicionalmente deficitário das trocas portuguesas e, assim, ajudar a compor a situação financeira do país.
Os acontecimentos revolucionários concentraram-se, assim, em três teatros principais. Na Rotunda, onde, após vários confrontos com a Guarda Municipal, os revoltosos se barricaram na madrugada de 4 de Outubro, a que, sob o fogo de Artilharia I e das cargas da Guarda Municipal, se foram juntando milhares de civis e de militares desertores sob o comando do membro da Alta Venda

Em Maio de 1891 foi decretada a suspensão da convertibilidade, a que, em breve, em Junho, se seguiu o abandono do padrão-ouro. Falou-se de bancarrota e o público reagiu em pânico: entre Maio e Setembro de 1891 acorreu aos depósitos bancários e à conversão de notas. O Banco de Portugal ficou sem reservas e outros bancos acabaram por suspender pagamentos. Os tempos eram de acentuada instabilidade e de grande agitação política e social. As tentativas de regeneração do regime monárquico, as humilhações externas e, sobretudo, a bancarrota do Estado constituíam o prenúncio da queda inexorável do regime.

Em 31 de Janeiro de 1891 deu-se, no Porto, a primeira revolta armada contra a Monarquia. A revolta teve o apoio de alguns militares e de muitos populares. Mas a guarda municipal, fiel à monarquia, venceu os revoltosos. O número de mortos foi grande. A tendência revolucionária  instalara-se;  a agitação política e as manifestações populares contra a Monarquia prosseguiram e aumentaram durante o governo chefiado pelo regenerador dissidente João Franco, sobretudo desde que, em Abril de 1907, D. Manuel lhe concedeu a ditadura.

No dia 1 de Fevereiro de 1908, em Lisboa, deu-se então o atentado à família real, tendo sido mortos o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe. D. Manuel II, o outro filho de D. Carlos, tinha apenas 18 anos quando recebeu a coroa portuguesa. O jovem rei procurou o apoio de todos os partidos monárquicos, mas ser-lhe-ia impossível travar a onda republicana, até porque os próprios partidos monárquicos dificilmente se entendiam,  enquanto os republicanos se uniam e conspiravam…contra o rei e contra o derrube da Monarquia. Assim seria em 1910. Sob a pressão decisiva da Carbonária e o apoio da ala do Partido Republicano Português defensora do recurso às armas, os republicanos lançaram-se finalmente, após dois anos de controvérsias e hesitações, ao assalto do poder em Lisboa.

O Presidente do Conselho de Ministros, Teixeira de Sousa, tinha sido avisado de que a Revolução estava à espreita. Havia perigo. Por toda a cidade de Lisboa as tropas estavam alerta. A 4 de Outubro de 1910, depois de jantar com o Presidente do Brasil, o rei, D. Manuel II, partiu para o Palácio das Necessidades, enquanto o seu tio, e herdeiro da coroa, D. Afonso, seguia para a Cidadela de Cascais. Na véspera, dia 3, os chefes republicanos tinham reunido com urgência. Alguns temiam as tropas em alerta e, por isso, preferiam adiar a Revolução, mas o Almirante Cândido dos Reis insistiu para que a Revolução prosseguisse.

A revolução republicana iniciou-se em Lisboa na madrugada do dia 4 de Outubro de 1910. O movimento revolucionário partiu de pequenos grupos de conspiradores – membros do exército e da marinha (oficiais e sargentos), alguns dirigentes civis e grande número de populares armados.

A revolução apoiava-se na revolta dos principais quartéis de marinheiros da capital (o Quartel de Marinheiros em Alcântara e o Arsenal de Marinha, à Praça do Município), de três vasos de guerra fundeados  no Tejo (Adamastor, São Rafael e, posteriormente, o cruzador Dom Carlos, navio almirante) de duas unidades do Exército (Infantaria 16 em Campo de Ourique e Artilharia 1 em Campolide) na acção de milhares de civis das “choças” carbonárias indispensáveis ao controlo da cidade de Lisboa, sabotando  as comunicações dos comandos monárquicos, cortando acessos por estradas e caminhos-de-ferro, emboscando as tropas fiéis nas ruas. Os acontecimentos revolucionários concentraram-se, assim, em três teatros principais. Na Rotunda, onde, após vários confrontos com a Guarda Municipal, os revoltosos se barricaram na madrugada de 4 de Outubro, a que, sob o fogo de Artilharia I e das cargas da Guarda Municipal, se foram juntando milhares de civis e de militares desertores sob o comando do membro da Alta Venda e da Cabonária, comissário naval Machado dos Santos. Os revoltosos resistiram às tropas fiéis à monarquia, comandadas a partir do Quartel do Carmo, aonde, no dia 5 de manhã, Machado dos Santos se dirigiu para aceitar a rendição do Alto-Comando monárquico. O segundo teatro foi o da linha do Tejo, em articulação com o Quartel de Marinheiros, e mais tarde com o Arsenal de Marinha. Não tendo conseguido, no dia 4, ocupar o Palácio das Necessidades, os revoltosos, com o apoio da artilharia civil da carbonária nas ruas do bairro, combateram as forças militares fiéis à monarquia até que os navios Adamastor e São Rafael bombardearam  o Palácio Real das Necessidades, pondo em fuga a família real, primeiro para Mafra, depois, no dia 5 de Outubro, com destino a Gibraltar, embarcando na praia da Ericeira. Por fim, a rua, desde Alcântara até à zona oriental de Lisboa, onde os grupos carbonários combateram as forças fiéis.

Apesar de alguma resistência e dos vários confrontos militares, o exército fiel à Monarquia não conseguiu organizar-se de modo a derrotar os revoltosos. A Revolução saiu vitoriosa. Na manhã do dia 5 de Outubro de 1910 foi proclamada a República em Portugal, a segunda na Europa, e anunciado o Governo Provisório das varandas da Câmara Municipal de Lisboa pela voz de José Relvas.

Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 113 - Setembro/Outubro de 2009

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