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1918: Pneumónica, ou a Gripe Espanhola

A Luta, 4 de Outubro de 1918:

Pode dizer-se que já alastrou por todo o País, e em Lisboa grassa ela com intensidade.
Mandou o governo que não prosseguissem os exames nos liceus, e que todos os estabelecimentos d’ensino não funcionem, até nova ordem.
É certo que os teatros e os animatógrafos continuam abertos, e ahi a multidão, para efeitos de contágio, é mais perigosa que nas escolas.
Divergem as opiniões quanto à natureza da doença …
(…)
Conveniente seria (…) que até que a epidemia cesse, não atravessem processionalmente os cadáveres a cidade, em longos comboios fúnebres, repetidos a cada hora.(…)
A Luta, 10 de Outubro de 1918:
A gripe pneumónica. A epidemia continua a alastrar.
Moncorvo, 7. Continua aumentando extraordinariamente (…)
Samora Correia, 7. Continuam prolongando-se os casos da gripe pneumónica, havendo casas onde se encontram todas as pessoas da família atacadas do terrível mal. (…)
Coimbra, 9. A terrível epidemia da gripe pneumónica vai declinando um pouco nos militares
(…)
Miranda do Douro, 6. Estamos a braços com uma temerosa epidemia gripal (…) Quase metade da população do concelho está enferma (…)
Aljustrel, 8. A epidemia da gripe pneumónica bate-nos à porta. (…)
Ericeira, 8. Nesta vila está grassando com grande intensidade (…) sendo o número de pessoas atacadas diariamente 20 a 30, estando a população num verdadeiro pânico.
(…)

Faz agora 90 anos que a pneumónica matou mais de 50 mil pessoas em Portugal, entre as cerca de 70 mil que pereceram por
epidemias entre 1918 e 1919.

Morreram do mesmo mal quase 50 milhões de pessoas no Mundo inteiro; foi a epidemia mais mortífera de todos os tempos. A Pneumónica matou mais gente do que a I Guerra Mundial que, não sendo certamente estranha à propagação da epidemia, vitimou “apenas” 8 milhões.

Apesar do “esquecimento generalizado”, a Pneumónica ficou na História de todos nós. Os que sobreviveram calaram a dor e transportaram a memória sofrida, mais ou menos difusa, dessa calamidade que flagelou países, cidades, localidades, famílias inteiras.

O espectáculo, de dor e morbilidade, só muito tenuamente se aproxima do que os relatos da imprensa da época registaram e de que acima se reproduz um mero apontamento.

Trilogia mórbida


Em Portugal, a epidemia deflagrou e propagou, potenciando a já tétrica trilogia da miséria, da guerra e da morte. A sua história deve ser contada considerando o contexto do País que éramos, tomando em devida conta a economia e a sociedade portuguesas de então e a sua evolução sob o signo da I Guerra e do sidonismo; as políticas e estratégias dos poderes públicos (ou sua ausência) inscritas no quadro republicano, em geral, e no tempo de guerra, em particular, compreendendo o cenário de instabilidade política e financeira, a situação endémica de crise económica e social, a agudização da instante “questão das subsistências” e o crescendo em miséria e descontentamento social e político; tudo isso num contexto internacional e de mundialização em que a Guerra, a situação económica e social e a própria condição epidémica, se enquadram e decorrem.

Nesse drama de adversidades cruzadas, sobrevém com estrépito o crescente mal-estar social, entre uma população que, para lá do exagero das mortes, o horror da fome e o quadro de miséria humana instalada, foi sobrevivendo à degradação inusitada das condições e do nível de vida; entre tudo, perpassaram, entre críticas e reacções de sinal conforme ou contraditório, sensibilidades políticas e inspirações ideológicas diversas, projectaram-se ideias e convicções, num clima de pensamento fervilhante em “saídas” políticas e modelos económicos e sociais.

A Guerra, a Fome, a Morte, concertaram-se em cortejo fúnebre, ao rubro em 1918. Tal como pelas outras partes do Mundo, a conjuntura da I Guerra, os efeitos que condensou, desencadeou e que, como a Pneumónica, concentrou e potenciou, determinaram um momento de viragem.

Os reflexos políticos foram complexos e tiveram impactos em cadeia e duradouros num País que, entre hesitações e inércias ao
nível da sua actividade económica tardava em dar resposta aos desafios e às possibilidades da moderna expansão económica e
desenvolvimento social.

Note-se, portanto, essa especificidade no quadro da conjuntura em que a pneumónica aconteceu e alcançou rapidamente uma dimensão inusitada; ou, como as precárias condições de vida, ou, o generalizado atraso económico e social português, operou negativamente, actuou e potenciou a propagação e os efeitos da pneumónica e o cenário de morbidade registado no nosso País.

É certo que, entrecruzado por crises e perturbações nacionais e internacionais afectando quer a Metrópole, quer as colónias nos diversos sectores de actividade, defrontado com o crescimento da contestação operária, o período republicano conheceu momentos em que ocorreram desenvolvimentos interessantes, nomeadamente, no imediato pós-Guerra, no campo da indústria. Contudo, embora se tenha registado um crescimento razoável do sector industrial, ele foi circunscrito e longe de conseguir catapultar Portugal para o nível dos países industrializados da Europa. A economia nacional continuou a contar essencialmente
com a sua actividade agrícola, embora muito insuficiente para as necessidades nacionais. Entre críticas, receios e até propostas de soluções a “questão das subsistências” continuaria… persistentemente. Assim seria, até porque não era sequer claro o curso que haveria de presidir à condução dos destinos do desenvolvimento económico do País, atávico face ao debate que opunha, em termos de ideias, duas concepções contraditórias que o deviam orientar. De um lado uma concepção que, no quadro das ideias da época, defendia a especialização do País na produção agrícola, por outro, um conjunto de ideias dispersas, com algum fundamento em correntes do pensamento económico, que defendiam o apoio a uma industrialização que as circunstâncias sempre iam fazendo abortar.

Entre desencontros políticos, desacertos estratégicos, dificuldades financeiras, e outros escolhos recorrentes, o País teimou entre a falta de vontade/visão e a incapacidade de desencadear e potenciar dinâmicas auto-sustentadas de desenvolvimento, em que cenários de miséria social – semelhantes aos que favoreceram a propagação da Pneumónica em 1918 – para lá do habitual e constante esvaziamento da memória histórica – pudessem ficar definitivamente excluídos.

A pneumónica chegou abruptamente, fazendo brutalmente recordar o horror que marcara o ciclo de grandes surtos epidémicos, persistente até aos meados do século XIX. Foi antecedida pelo tifo que, entre 1917 e 1918, vitimou mais de 2 mil portugueses, sobretudo os mais velhos, os mais pobres, os mendigos e os indigentes. O tifo, com origem em Espinho, atingiu com grande violência a cidade do Porto, onde as deploráveis condições de higiene favoreceram a sua propagação rápida, sobretudo por contaminação veiculada por pulgas e piolhos, como na época Ricardo Jorge identificou.

A gripe espanhola atacou generalizadamente o País, atingindo uma população que em 1911 somava 5.550 mil habitantes, 20% dos quais vivendo em cidades. Uma população “frágil”, caracterizada por uma elevada taxa de mortalidade, em particular infantil, cuja principal causa de morte era, em condições normais, a tuberculose (que só entre 1910 e 1920 matou cerca de 100 mil portugueses), e que “convivia” com a pneumonia e a varíola.

A pneumónica, somando os seus efeitos aos da Guerra, veio provocar a interrupção do tímido crescimento demográfico.


O ano negro de 1918


Tudo começou em Maio de 1918, quando foi declarada em Espanha uma epidemia gripal que em breve se propagaria a Portugal – estando na génese do nome de Gripe Espanhola porque ficou conhecida. Considera-se hoje em dia, porém, como sendo mais provável a origem norte-americana da doença.
Na realidade, sabe-se que nos inícios de Março de 1918 a doença já se manifestava nos EUA, propagando-se a partir daí para a Europa, transformando-se numa pandemia que em escassas semanas atingiu todos os Continentes. Em Junho já era uma epidemia à escala mundial, tendo entretanto chegado a Portugal a partir de Espanha, pela fronteira alentejana. A partir daí desenvolveu-se em duas vagas: uma primeira, entre Maio e finais de Julho, mais branda, em que a epidemia se manteve em situação mais ou menos controlada, a que sucedeu um segundo ciclo, entre Agosto e Dezembro, terrivelmente dramático, assumindo efeitos verdadeiramente devastadores.

A gripe atingiu inicialmente as zonas fronteiriças, mas, em breve, sobretudo devido às deslocações de pessoas, atingiu as zonas litorais e, em particular, Lisboa e Porto. Entre Junho e Julho grassou na capital, onde chegou a provocar mais de 400 mortos por semana. Em meados de Julho o pior parecia ter passado… Porém, em finais de Agosto, tal como de resto aconteceu em muitos outros países, rebentou uma segunda vaga, de características diferentes no que respeita à fisionomia da doença, que assumiu proporções muito mais violentas.

Epidemiologia
A influenza pneumónica
Nota apresentada pelo prof. Ricardo Jorgeao Conselho Superior de Higiene:
A vaga epidémica que nos princípios deJunho rolou de Hespanha, há que reconhecer que nos tratou com acentuada benignidade. Trazia já no seu séquito os ataques pulmonares, que mais serviram para caracterizá-la, mas não há dúvida que foi o menos malignapossível; branda, de pouca demora, eaté de mais fraca difusão que a habitual(…)
Desde Agosto que uma nova vaga se enrola,sem a relativa inocência da primeira.
Tem este jeito sabido a influenza; retornaquando menos se espera, em ondulações sucessivas,e estas reincidências costuma tambémrequintar de gravidade.
A Medicina Contemporânea, 29 de Setembrode 1918, p. 308.

Depois da aparente acalmia, o surto agravou-se, propagando-se duramente pelo País, mostrando uma dimensão inusitada, gerando o pânico entre todos e deixando evidente o quadro de incapacidade generalizada para o combater.
Fez-se o que se pôde, accionando medidas, por vezes contraproducentes, entre as quais autorizações de deslocações de pessoas, nomeadamente militares. Entre tudo, emergiu um cenário de total impotência; a começar pela medicina… a ciência médica não sabia ainda lidar com esta doença.

Entre medidas exploratórias, esforços imensos no sentido de perceber e vencer esta gripe; entre advertências mais consistentes, resultantes de um quadro de maior percepção quanto à excepcionalidade da tragédia, como as propostas pelo Director Geral de Saúde, Ricardo Jorge, a ausência de conhecimentos médicos e dos processos clínicos mais adequados impediu o tratamento adequado das vítimas e inibiu a possibilidade de conter a influenza. De resto, a pandemia contava com aliados poderosos: a guerra, como já foi referido acima, e o cortejo interminável de efeitos nefastos, a insuficiência e a incapacidade dos serviços de saúde e de assistência, as deploráveis condições de higiene e sanitárias em que vivia a maioria da população, a generalizada escassez de bens alimentares e medicamentos, enfim, tudo quanto carismava a pobreza ou o baixo nível cultural, económico e social da população portuguesa, compunham um palco dramaticamente favorável à progressão da doença. Esta propalaria em crescendo até Outubro – o mês mais negro da Pneumónica em Portugal.

Entre o desconhecimento generalizado sobre as formas de combater a espanhola, o pânico generalizado ou a escassez de recursos, a maior parte das medidas implementadas surtiram ineficazes ou inúteis e, nalguns casos, até contraproducentes; mesmo as recomendações mais avisadas, como as lançadas pela Direcção-Geral de Saúde, tiveram poucos reflexos, surgindo desajustadas ou irrealizáveis; para não falar das medidas precipitadas e totalmente inoportunas, dos conselhos inúteis ou dos autênticos placebos que, impotentes, as autoridades e os médicos iam lançando mais ou menos à toa. Se, por um lado, a rapidez com que alastrou e a dimensão que a epidemia alcançou, surpreenderam todos, autoridades, serviços oficiais, população em geral; por outro lado, era total a ignorância quanto a medidas profiláticas a implementar.

Debalde se tentou montar um combate organizado à epidemia. Lutando contra as precárias condições de vida que afectavam a maioria da população, a generalizada ausência de condições de higiene, a insuficiência dos serviços de saúde, a falta de médicos, a falta de medicamentos, que a especulação agravava, a pneumónica continuou a devastar… ceifando vidas, sem escolher vítimas. Apesar de chegar a todos, entre os poucos ricos e os muitos pobres as clivagens eram cada vez maiores, as injustiças sociais, que os negócios de guerra avolumavam, eram muitas… Como quase sempre acontece, a tragédia alimentou-se da miséria: a pneumónica penalizou sobretudo os mais desfavorecidos.

Um pouco por todo o lado o espectáculo era a morte; corpos amontoados, miséria e sofrimento. Os hospitais improvisados, entre liceus e casas particulares, para além dos que existiam, não chegavam para tantas vítimas… não havia sequer capacidade para enterrar os corpos…

Surgiram muitas iniciativas, reuniram-se imensos esforços, materiais e humanos, públicos e privados; todos tentaram ajudar, no sentido de lutar contra a gripe e, concretamente, assistir as suas vítimas, sobretudo os mais carenciados… Paliativos, é certo; pois, naquelas condições, não era possível travar a tragédia...

Passado o período mais dramático, que ocorreu em Outubro, a epidemia foi-se desvanecendo ao longo do mês de Novembro. Mas enfim, por essa altura, os meios políticos, e o País em geral, estavam suspensos do desfecho da Guerra e da situação política, económica e social nacional, em breve inflamada pelo assassinato de Sidónio Pais.

A Pneumónica, que por junto terá morto (as estimativas variam) entre 50 e 70 mil pessoas, essa, rapidamente se quis “esquecer”, deixando-a, como memória dolorosa, no limbo do subconsciente colectivo – como se tudo tivesse acontecido fora da Terra dos Homens (sendo certo que alguns a consideraram castigo divino).


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 105 - Maio/Junho de 2008

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