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Em prol da electrificação do País - I



Destinada à central de Castelo de Bode inicia-se, em 1959, o transporte da roda polar do primeiro gerador.
Pesando 70 toneladas e com nove metros de diâmetro, este transporte exigiu a encomenda de uma viatura de oito eixos e 20 metros de comprimento.















Foi em plena II Guerra Mundial que em Portugal se lançou, finalmente, passadas longas décadas de impasse e debate atávico, reflectidos numa inércia persistentemente inibidora do desenvolvimento do País, um programa de electrificação nacional.

Com a promulgação da Lei n.º 2002, da Electrificação do País, de Dezembro de 19441, estabeleceram-se os princípios da produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, consagrando a centralização da produção e a preferência pela hidroelectricidade, assumindo o projecto da electrificação como um empreendimento da responsabilidade do Estado. Em breve o processo de electrificação do País foi efectivamente posto em marcha.

O autor da Lei foi o engenheiro José Nascimento Ferreira Dias2, chamado ao Governo para integrar, como Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria, a equipa que compunha o recém-criado Ministério da Economia cuja chefia fora entregue a Rafael Duque. Ferreira Dias foi o mentor e principal protagonista da estruturação do programa de modernização económica, assente nas propostas de electrificação e industrialização, consubstanciadas, respectivamente, na referida Lei 2002 e na Lei n.º 2055, do Fomento e Reorganização Industrial, que condicionaria a formatação da política económica e o percurso da economia portuguesa nos anos seguintes. Os esforços do Governo, em matéria de realizações, como então salientou o Subsecretário, concentrar-se-iam desde logo na electrificação do País – sem a qual serão vãs todas as tentativas de industrialização em escala apreciável.3
Eng. José Nascimento Ferreira Dias

A Lei n.º 2002 foi imediatamente posta em execução, significando que a questão sucessivamente evocada da produção eléctrica encontrou finalmente um desfecho promissor. Na proposta de apresentação da Lei4 estavam bem claros os objectivos que a orientavam, percebendo-se quão amadurecidas estavam as ideias de Ferreira Dias nestas matérias. A electrificação era apresentada como uma condição fundamental para o processo de modernização/industrialização do País5.

Ficava também definido o conceito de rede eléctrica nacional (tema que, aliás, já fora objectivo da comunicação apresentada por Ferreira Dias ao I Congresso da Engenharia realizado em 19316, de cuja comissão organizadora foi Secretário-geral, e que vinha sendo constantemente evocado no âmbito de outros textos dedicados ao problema da electrificação portuguesa7), partindo sempre do princípio de que a produção de electricidade terá de ser de origem hidráulica devendo as centrais térmicas reservar-se para funções complementares, nomeadamente durante o Verão, para aproveitar os carvões pobres de origem nacional8. Mas a aprovação do programa de electrificação, embora o evidente e denunciado atraso de Portugal nesse campo, como noutros domínios, relativamente à maioria dos países europeus, não foi fácil nem pacífica. Requereu longas dezassete sessões de discussão consecutivas na Assembleia Nacional; só então, vencidos opositores e resistências, a Lei acabou por ser aprovada e promulgada, estando já Ferreira Dias fora do Governo.


Barragem do Picote

Supico Pinto sucedeu a Rafael Duque na pasta e a Economia, assumindo a electrificação do País como prioridade em termos de programa económico, o que não sucederia com outras dinâmicas de modernização gizadas nos anos anteriores, especialmente em matéria de reorganização e fomento industrial. Definido o quadro legal da electrificação do País, que consagrava a centralização da produção de energia e a preferência pela hidroelectricidade, a obra seria assumida, como já foi referido, como um empreendimento da responsabilidade do Estado. Os anos seguintes registaram um assinalável dinamismo nesta área. Foram constituídas as empresas de capitais mistos que assegurariam os futuros aproveitamentos hidroeléctricos: logo em 1945 a Companhia Hidro-Eléctrica do Cávado e a Companhia Hidro-Eléctrica do Zêzere, sediadas no Porto e em Lisboa, respectivamente, e nas quais o Estado participava
com um terço do capital accionista9.


Barragem do Zêzere

No final do mesmo ano, em Dezembro, foi promulgado o decreto-lei que organizava a Direcção Geral dos Serviços Eléctricos. Ainda em 1945 ficou determinado10 que o Governo, sempre que o julgasse conveniente, poderia impor, nos diplomas de concessão de aproveitamentos hidroeléctricos, que a execução das respectivas obras ficasse sujeita à fiscalização técnica dum organismo oficial especialmente encarregado dessa missão.

Esse organismo – a Comissão de Fiscalização das Obras dos Grandes Aproveitamento Hidro-eléctricos – foi criado no ano seguinte11, quando as duas  empresas concessionárias começaram os trabalhos em Castelo do Bode e em Venda Nova. Mas o processo não foi fácil; a própria constituição das empresas foi mais uma conquista difícil na batalha travada pela electrificação do País, desta feita vencida por Supico Pinto, como o próprio deixou testemunhado: Só eu sei a atenção, o cuidado, o esforço, as dificuldades que foi preciso vencer para num país em que há muitos descrentes das nossas riquezas próprias e das nossas possibilidades e em que além de haver muitos descrentes há muitos interesses cimentados em certos sectores... Só eu sei as dificuldades que tive em pôr de pé as duas empresas que hoje são as adjudicatárias das concessões do Cávado e do Zêzere.12


1 Lei n.º 2002, da Electrificação do País, Diário do Governo (DG), I Série, 26 de Dezembro de 1944.
2 José Nascimento Ferreira Dias Júnior. Engenheiro electrotécnico e mecânico pelo Instituto Superior Técnico (IST), Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria entre 28 de Agosto de 1940 e 6 de Setembro de 1944.
Licenciado em Engenharia Electrotécnica e em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa, onde foi professor desde 1928 até 1966. Em 1925 iniciou a sua actividade profissional na CUF. Em 1936 foi nomeado Presidente da Junta de Electrificação Nacional. Em 1947 foi nomeado Presidente da Companhia Nacional de Electricidade, no ano seguinte assumiu a presidência do Conselho de Administração do Metropolitano de Lisboa. Designado Presidente da Câmara Corporativa em 1957. Subsecretário de Estado do Comércio e da Indústria de 1940 até 1944 e Ministro da Economia de 1958 até 1962.Ver sobre Ferreira Dias e as suas principais publicações J. N. Ferreira Dias Jr., Linha de Rumo I e II e Outros Escritos Económicos, 1926-1962, 3 vols., Introdução e Direcção de Edição de J. M. Brandão de Brito, Lisboa, Banco de Portugal, 1998.
3 "Discurso de Sua Ex.ª o Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria pronunciado na sessão solene realizada na sede da Associação Industrial Portuense no dia 3 do corrente”, in BDGI, Ano VIII, nº 401, de 18 de Maio de 1945, p. 580.
4 "Proposta de lei acerca da electrificação do País”, in Diário das Sessões da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa (Diário das Sessões), n.º 79, de 24 de Outubro de 1944.
5 Ficando explícito, na abertura do relatório acima citado, que A presente proposta de lei contém os princípios que se reputam necessários para levar a seu termo a obra de electrificação do País, base da reorganização e fomento industrial.
6 José Nascimento Ferreira Dias Jr., "Rede Eléctrica Nacional”, in I Congresso Nacional de Engenharia, Lisboa, 1931, Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1931.
7 Sendo de destacar, entre diversos textos, os «Relatórios» que antecediam a publicação anual das Estatística das Instalações Eléctricas em Portugal. Anos de 1931-1938, Ministério das Obras Públicas e Comunicações, Direcção dos Serviços Eléctricos/Junta de Electrificação Nacional, Imprensa Nacional, Lisboa, 1932-1939, onde se encontram escritas as suas principais ideias sobre a produção de electricidade e da relação desta com a industrialização que acabarão por ficar consubstanciadas na Lei n.º 2002; como o próprio Ferreira Dias deixaria escrito no Prefácio da Linha de Rumo: em 33 tinha redigidos os princípios da electrificação; antes do fim de 40 estavam-no os da reforma industrial (...), p. 25.
8 Ver J.M. Brandão de Brito, "Lei n.º 2002, da Electrificação do País, in DHEN, pp. 515-516.
9 Ver "Nota oficiosa de Sua Ex.ª o Ministro da Economia definindo a política de execução de novos empreendimentos hidroeléctricos”, in BDGI, Ano VIII, nº 412, de 1 de Agosto de 1945, pp.749-753.
10 Pelo Decreto-lei n.º 34 919, subordinando a cadernos de encargos especiais, enquanto não forem aprovados os cadernos de encargos tipo a que se refere a base XIV da Lei n.º 2002, as concessões eléctricas que vierem a ser dadas, DG, I Série, n. 207, de 15 de Setembro de 1945.
11 Pelo Decreto-lei n.º 35 684, de 3 de Junho de 1946.
12 "Discurso de Sua Ex.ª o Ministro da Economia pronunciado na segunda sessão de trabalhos da I Conferência da União Nacional, realizada no dia 11 corrente”, in BDGI, Ano IX, n.º 481, de 27 de Novembro de 1946, p.187.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Publicado na Revista Ingenium N.º 122 - Março/Abril de 2011

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