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Engenharia Militar

Por ocasião do III Congresso Rodoviário Português, realizado no Centro de Congressos de Lisboa entre 24 e 26 de Novembro último, em que estiveram presentes várias centenas de individualidades nacionais e estrangeiras ligadas à temática rodoviária, o Centro Rodoviário Português (CRP) convidou o Exército e a Força Aérea Portuguesa para dar a conhecer o muito que estas instituições têm feito nesta área, por motivos operacionais ou para apoiar o desenvolvimento do país.

Ficou acordado que a intervenção destes Ramos das Forças Armadas decorreria em dois patamares: uma sessão temática, em que foram apresentadas algumas comunicações, e a organização de uma exposição, e respectivo catálogo, que permitisse visualizar as várias realizações que a Engenharia Militar Portuguesa foi abraçando desde o século XVII até à actualidade.
Se é um facto que a realidade dos nossos dias não se pode construir unicamente das glórias do passado, não deixa de ser verdade que a História deverá funcionar como os alicerces que nos permitam, mais solidamente, construir o presente e o futuro.

Em Portugal, a História da Engenharia confunde-se com a da Engenharia Militar, pelo menos até finais do século XIX, já que ambas derivam de um tronco comum iniciado no reinado de D. João IV com a Aula de Fortificação e Arquitectura Militar.
Daqui sairiam muitos dos mais prestigiados Engenheiros que deixaram obra pelos quatro cantos do Mundo por onde os portugueses passaram, e que ainda hoje pode ser apreciada em países como o Brasil, Angola, Moçambique ou Timor-Leste.

Sem querer ser exaustivo na enumeração de todos os que contribuíram para a História da Engenharia Militar, lembremos figuras como Mascarenhas Neto, que em 1790 publicou o “Método para Construir Estradas em Portugal”, para além de ter projectado a estrada Lisboa - Porto e desta cidade para Guimarães.



Ele foi o primeiro Engenheiro militar a estabelecer a coordenação entre as áreas das infra-estruturas, das comunicações e dos transportes, serviços estes que ficaram sob a responsabilidade da Engenharia Militar.

Relembremos Passos Manuel que transformou a Academia de Marinha e a Academia de Fortificação na Escola Politécnica e na Escola do Exército, dando, deste modo, os primeiros passos para separar a Engenharia civil da militar.
Acima de todos recordemos o General Fontes Pereira de Melo.

Este insígne militar, que viveu no século XIX, organizou o Ministério das Obras Públicas, criando as condições para Portugal dar um autêntico salto qualitativo e quantitativo ao nível das acessibilidades fluviais e terrestres. Nesta altura deu-se início à construção dos caminhos-de-ferro, tendo havido um forte incremento de construção destas vias até ao final do século XIX.
Não ficou por aqui a brilhante acção deste Engenheiro militar, já que ela também se fez sentir na então chamada Pasta da Guerra, tendo procedido à reorganização do Exército em 1884. Na área do ensino, a sua acção ficou ligada à reformulação do ensino industrial e à criação dos cursos de Engenheira civil na Escola Politécnica de Lisboa e na Academia do Porto. No século XX, a Engenharia Militar foi chamada várias vezes a intervir, algumas delas em situações particularmente difíceis.

A primeira ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, depois do Governo de Portugal ter percebido o enorme interesse que alguns territórios poderiam ter para ambos os beligerantes. Tendo assumido uma posição de neutralidade, foi decidido executar um vultuoso volume de obras de fortificação no Arquipélago dos Açores, a par da construção de várias estradas e pistas de aviação, para reforçar a capacidade defensiva do Arquipélago. Não ficou por aqui a intervenção, tendo havido trabalhos de Engenharia na Madeira, em Cabo Verde e em Timor, neste caso após a reocupação do território em 1945.
No Continente foram construídas as pistas de aviação de Tancos, Cortegaça e Ota.

Após a adesão à NATO, Portugal fez investimentos muito avultados na região de Santa Margarida para aí poder alojar a Divisão Nuno Álvares. Foram construídos o Campo Militar e respectivos acessos, uma estação de caminho-de-ferro e uma pista de aviação para aeronaves de carga.
Nas décadas de sessenta e setenta, as Forças Armadas Portuguesas estiveram fortemente envolvidas nos Teatros de Operações da Guiné, Angola e Moçambique.

A Engenharia Militar mobilizou muitos meios para África, tendo como uma das principais tarefas a abertura de caminhos, estradas e pistas de aviação para a operação de pequenas aeronaves. Estas obras, ao mesmo tempo que ajudavam a optimizar o emprego das unidades militares, facilitando o seu deslocamento ou permitindo que os meios logísticos pudessem fluir desde as bases, geralmente localizadas junto aos grandes portos e aeroportos, até às profundezas destes territórios, também se constituíram como uma das principais alavancas ao desenvolvimento das regiões mais atrasadas e à implantação da administração pública, principalmente nas áreas rurais.

Em 1961, ano do início das acções de guerrilha em Angola, existiam, neste país, cerca de 36.000 quilómetros de estradas. Em 1974, a rede viária tinha ultrapassado os 80.000 quilómetros, 12 por cento dos quais asfaltados. Durante os três primeiros anos a acção de construção e manutenção de rodovias esteve inteiramente entregue ao Batalhão de Engenharia que, em 1964, deu origem ao Agrupamento de Engenharia de Angola. Na fase posterior do conflito, a Junta Autónoma de Angola trabalhou estreitamente com a entidade militar, tendo-se conseguido atingir a média de construção de 1.100 quilómetros de estradas por ano.

Na Guiné, território onde em 1963 se registaram os primeiros combates, existiam, a esta data, cerca de 3.100 quilómetros de estradas. A par da reparação destas vias originais, foram abertos, até 1974, mais 520 quilómetros, dos quais 241 pelo Batalhão de Engenharia da Guiné. A particularidade hidrográfica deste país levou a que fosse necessário proceder a importantes obras de drenagem durante a construção das vias, mas ao mesmo tempo permitiu operar alguns trens de navegação nos principais rios, garantindo a ligação entre as margens. Neste Teatro de Operações foi particularmente premente a asfaltagem das estradas para contrariar a guerra de minas que o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) levou a cabo.

Moçambique foi o último território a ter acções militares, tendo estas começado em 1964. Nesse ano estavam construídos cerca de 37.000 quilómetros de estradas que, até 1974, foram aumentadas em mais 11.000 quilómetros. Neste país foi necessário reformular o conceito geral de orientação da rede viária, que até 1964 era Este-Oeste, passando a ser Norte-Sul. Tal como na Guiné, também aqui houve um grande esforço de asfaltagem das vias para contrariar a guerra de minas que a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) levou a cabo, ao mesmo tempo que, em estreita colaboração com a Junta de Estradas de Moçambique, se edificou um considerável número de pontes. A Engenharia Militar teve neste território um Batalhão de Engenharia, que em 1964 deu lugar ao Agrupamento de Engenharia de Moçambique.

Nos três territórios que viveram a guerra, foi feito um grande investimento na construção de aeródromos, particularmente em Angola e Moçambique. Em territórios com tão grande superfície, tornou-se essencial o uso dos meios aéreos para garantir a ligação e o reabastecimento logístico às mais variadas unidades que foram colocadas no terreno, pois rapidamente se constatou que não era suficiente continuarmos a assentar os fluxos de homens e de materiais exclusivamente nas vias marítimas e terrestres.
Muitas destas pistas foram construídas em terra batida, estando, no entanto, aptas a que pequenas aeronaves aqui aterrassem, transportando os artigos mais críticos ou evacuando feridos.

Num mundo cada vez mais global, em que devem ser aproveitadas as sinergias das mais variadas organizações é, de todo, conveniente que estejam perfeitamente identificadas as capacidades que as Forças Armadas podem pôr ao dispor da sociedade civil, bem como aquelas que lhes poderão ser incrementadas para aumentar a eficácia da sua actuação.

Em África houve uma interligação muito estreita e proveitosa das entidades militares e civis em várias áreas, incluindo a da construção e manutenção de rodovias, permitindo optimizar os escassos recursos existentes.

Depois da profícua experiência vivida nos territórios ultramarinos, que já vinha na senda de outras intervenções que a Engenharia Militar Portuguesa tinha realizado nos quatro cantos do Mundo onde a gesta dos descobrimentos nos tinha levado, logo em 1975 deu-se início, em Portugal Continental, a um conjunto de actividades integradas no conceito de apoio ao desenvolvimento, aproveitando os conhecimentos e os meios humanos e materiais existentes.
Inicialmente, os trabalhos foram direccionados para a rede viária rural dos distritos de Bragança, Guarda e Castelo Branco. Actualmente, os Ministérios da Defesa Nacional e Assuntos do Mar e o das Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional têm vindo a definir, de um modo concertado, firmando protocolos, a actuação da Engenharia Militar, aproveitando as suas capacidades restantes, permitindo, deste modo, executar estradas e caminhos, bem como alguns aeródromos, principalmente nas regiões mais desfavorecidas do País.

Aproveitando as pontes de equipagem, várias montagens foram também levadas a cabo nestes últimos anos, permitindo substituir temporariamente pontes destruídas, ou até servir de alternativa para o trânsito rodoviário, como foi recentemente o caso da construção do metropolitano do Porto.
O Instituto Geográfico do Exército (IGeoE) tem efectuado trabalhos para apoio a estudos de viabilidade de implantação topográfica de traçados de eixos rodoviários, além dos que realiza na produção da cartografia específica. As novas tecnologias de geoposicionamento e orientação espacial, ao dispor do IGeoE, são ferramentas muito importantes para o planeamento, gestão de frotas e do tráfego, optimização de percursos e ainda para um grande conjunto de acções de natureza espacial associadas à construção, utilização ou gestão
de vias.

É um facto que, o vector militar, para além de ter que se preocupar com a defesa de Portugal, possui capacidades que, em tempo de paz, poderão estar vocacionadas para apoiar outros sectores do Estado ou entidades civis. Os dirigentes políticos, aquando da tomada da decisão, deverão ter sempre em mente que a temática da defesa é uma das variáveis a apreciar.
Portugal tem algumas áreas que são particularmente sensíveis em termos da sua defesa, nomeadamente o triângulo estratégico do Entroncamento – Tomar – Tancos/Santa Margarida. Aqui estão sediadas algumas das mais importantes unidades do Exército, bem como duas pistas de aviação, sendo possível balancear meios para Norte ou Sul do rio Tejo. Outra
zona particularmente importante é a região de Benavente, onde se situa o Depósito Geral de Materiais do Exército, bem como alguns meios logísticos da Força Aérea.

Quer num caso como no outro, o planeamento de novas vias rodoviárias e ferroviárias deverá ter em conta a possibilidade de, por exemplo, ser fácil deslocar os meios pesados da Brigada Mecanizada Independente para qualquer região do país, ou garantir que os meios logísticos pesados do Exército fluam facilmente dos portos de Setúbal ou de Lisboa para Benavente, e daqui para outras regiões do país.

O simples facto de Portugal ser um país onde algumas regiões são de elevado risco sísmico, ou que com alguma assiduidade sofrem inundações, deverá constituir algo que esteja na mente dos planeadores, permitindo criar vias de alternativa no caso de ser necessário fazer chegar meios de socorro a alguma destas regiões que tenha sido atingida por uma calamidade.

No passado como no presente, o correcto desenvolvimento do país, nas suas mais variadas vertentes - onde se incluem as vias rodoviárias -, é fundamental para garantir o bem-estar e o progresso da população, mas também o é para assegurar que Portugal estará cada vez mais apto para garantir a sua independência.

António José Fernandes Marques Tavares
Tenente-coronel de Engenharia
Chefe da Secção de Infra-estruturas do Governo Militar de Lisboa

Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 87 - Maio/Junho de 2005

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