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História e Património da Politécnica



Tem estado na ordem do dia a apresentação e discussão do Concurso de Ideias para o Parque Mayer e Museus da Politécnica.

Assinale-se, antes de mais, a importância da iniciativa, pelo que significa em matéria de preocupação e propósito quanto à requalificação da zona do Parque Mayer e Museus da Politécnica, o que deve, como se espera, ser levado a cabo no estrito respeito pela importante herança histórica e pelo rico legado patrimonial envolvidos directa ou indirectamente nesse projecto. Nesse sentido, refira-se a oportunidade, como tem sido apontado, que se abre em matéria de reflexão e debate.

Para lá da dimensão imediata e circunscrita da urgente e indispensável requalificação dessa zona da cidade, subjaz e condiciona o debate em torno de propostas e alternativas, a cultura histórica e patrimonial que existe (ou a falta dela) e o peso que se lhe confere no processo de decisão. Por outro lado, reacende-se o debate, em torno do lugar e da missão dos museus, em geral e especificamente os da Politécnica no quadro da cidade de Lisboa. Espaços públicos de vivência do saber e do conhecimento, locais espessos de cultura, intensos em heranças acumuladas, com missões e responsabilidades nem sempre reconhecidas, menos cumpridas, em matéria de preservação do património que contêm e de divulgação e promoção do conhecimento que encerram. Destinam-se a preservar, divulgar e promover conhecimento, desde logo junto da comunidade em que se inserem, o que só por si significa que o que se fizer deve ser feito com dignidade e rigor; assim saibam e queiram os diversos actores implicados, poderes públicos e privados e, claro, a sociedade a que pertencem, exigir a todos o bom cumprimento dessa missão, através do empenhamento (material e moral) e do nível cultural que o empreendimento merece.

Desta feita, o que está em causa tem a ver com um dos espaços mas ricos e significativos da herança cultural e patrimonial do nosso País, de particular relevo em matéria científica, histórica e arquitectónica, tal como tem sido, e bem, apontado e defendido.

Deve, de resto, assinalar-se a preocupação e a acção prosseguidas em matéria de preservação e recuperação dos espaços que compõem os actuais Museus da Politécnica, como atesta o restauro do Laboratório Químico da Escola recentemente inaugurado, em 17 de Maio de 2007, recuperando a traça original datada do século XIX. Constitui um exemplar raro no Mundo inteiro!

Esperemos, portanto, que o propósito de reabilitação em curso, que transcende a dinâmica e o protagonismo decisivo da Universidade de Lisboa, a quem os Museus pertencem, se cumpra com a prudência e com o rigor necessários, sempre no cumprimento das boas práticas de respeito pela integridade de uma herança histórica e patrimonial reconhecidamente única, que não pode ser alienada por interesses conjunturais e efémeros em nome de argumentos de sustentabilidade de duvidosa legitimidade e consistência. Trata-se de um legado que é de todos; cumpre-nos, no mínimo, salvaguardá-lo para as gerações
futuras.

Deixemos, pelo menos por agora, a discussão em torno do plano de pormenor, dedicando este artigo à apresentação sumária da história da Escola Politécnica, observando em particular a sua criação e a sua transformação em Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa tendo em conta os aspectos mais relevantes do seu património cultural e material. Do conhecimento desse passado decorre, antes de mais, a capacidade de respeitar o legado histórico singular que a Politécnica representa e contém.

Na realidade, do conjunto edificado dos Museus da Politécnica, destaca-se o complexo do Observatório Astronómico, exemplar único dos observatórios históricos de ensino em Portugal, o Real Picadeiro (1776), o Jardim Botânico e o núcleo da Biblioteca e Arquivo Histórico, que preservam a sua traça original, a que se acrescentam as colecções, bibliotecas e arquivos existentes, que devem ser preservados e valorizados. Trata-se de um conjunto, de reconhecido interesse nacional e internacional, cuja integridade histórica, científica e arquitectónica importa manter e valorizar.
 
A Escola Politécnica de Lisboa foi criada em 1837, por acção de Sá da Bandeira, ministro da Guerra de D. Maria II (1834-1853).

Tratava-se de uma Escola destinada à instrução militar onde se ensinaria Física e Matemática a nível universitário. Tal como explicita o decreto da sua criação (11 de Janeiro de 1837), a Escola tinha por objectivo formar alunos com os conhecimentos necessários para seguirem cursos das escolas do Exército ou da Marinha, dando-lhes instrução geral superior e a capacidade de exercerem outras profissões científicas. Assim se criava um instituto de ciências físicas e aplicadas destinado não só aos preparatórios dos engenheiros militares, engenheiros civis oficiais e construtores de marinha, oficiais de artilharia e Estado-maior, mas também a ministrar os conhecimentos auxiliares e indispensáveis ao estudo da medicina, da farmácia, do comércio, e o que mais importante é, da agricultura e da indústria.

Na prática, como se depreende, a nova instituição, criada pelo Ministério da Guerra (e não pelo do Reino, então chefiado por Passos Manuel) reunia duas Escolas, a Escola Politécnica e a Escola do Exército… Foi este o desfecho do impasse de dois anos, aberto na sequência da iniciativa do ministro Agostinho José Freire quando, em 1835, nomeou uma comissão destinada ao estudo da reforma do ensino público que, entre outros propósitos, visava a criação de estudos universitários em Lisboa e no Porto. O projecto, desagradando à Universidade de Coimbra, que mantinha a exclusividade do ensino superior, ficou, nesta fase, por concretizar. Rodrigo da Fonseca Magalhães, sucessor de José Freire, optou pela instituição do Conselho Superior de Instrução Pública (1835) e do Instituto de Ciências Físicas e Matemáticas (7 de Novembro de 1835) em Lisboa; instituição de existência efémera, cuja criação Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, substituindo Rodrigo da Fonseca, anulou em menos de um mês (2 de Dezembro de 1835)…

Foi então, já em 1837 e com Sá da Bandeira como Primeiro-ministro e Ministro interino da Guerra, que se criou a Escola Politécnica, instalando-a no edifício do Colégio dos Nobres, extinto poucos dias antes (4 de Janeiro).

Foi seu primeiro director o coronel de engenharia José Feliciano da Silva Costa. A Escola ministrava dez disciplinas (Álgebra, Geometria e Trigonometria; Cálculo Diferencial, Integral e das Probabilidades; Mecânica; Astronomia e Geodesia; Física; Química; Mineralogia e Geologia; Anatomia, Fisiologia e Zoologia; Botânica e Agricultura; e Economia Política), organizando cinco cursos para alunos, maiores de 14 anos, que se distinguiam entre ordinários e voluntários:

Para oficiais do Estado-maior,
Engenharia Militar e Engenharia Civil
4 anos
Para oficiais de artilharia3 anos
Para oficiais da marinha
Para engenheiros construtores navais 3 anos
curso geral (exigia a frequência das 10 cadeiras)
4 anos

A Escola, herdeira do património do extinto Colégio dos Nobres, dispunha de Laboratórios de Física, de Química e de Ciências Naturais, sendo-lhe anexado o Jardim Botânico da Ajuda e o Observatório Astronómico da Marinha, inserido no edifício do antigo colégio pombalino.

Por meados de 1840, estava a Escola já em pleno funcionamento, quando o deputado por Lamego, José Manuel Botelho, sugeriu a reabilitação do Colégio dos Nobres, por extinção da Politécnica. Alexandre Herculano saiu a terreiro na defesa da escola nova, quer como relator do parecer sobre o projecto de lei proposto por José Botelho – que veio a ser chumbado na Câmara dos Deputados –, quer através da publicação do opúsculo Da Escola Politécnica e do Colégio dos Nobres, elogiando a escola que considerava ser a única representante do novo sistema de instrução pública de que resultaria a regeneração intelectual e moral do povo português.

Salvou-se a Politécnica. Do antigo Colégio dos Nobres restaria cada vez menos; em 22 de Abril de 1843 sobreveio um incêndio que destruiu completamente o edifício. Salvou-se tudo o mais, mas a Escola teve que passar a funcionar em instalações provisórias. Apesar da determinação imediata da reconstrução das instalações no mesmo local, só em 1857 foi aprovada a planta do novo edifício e foram ainda necessários vinte anos para a sua conclusão. Durante esse período de tempo, a Politécnica assegurou o ensino sem interrupções. Entrementes, a Escola do Exército passou a funcionar no Palácio da Bemposta; construiu-se o Observatório Meteorológico (mais tarde denominado do Infante D. Luís), e transferiu-se para a Politécnica o Museu de História Natural da Academia das Ciências.

Entretanto, por Lei de 7 de Junho de 1859, a Escola Politécnica deixou de pertencer ao Ministério da Guerra, passando a depender do Ministério do Reino, demorando ainda praticamente dez anos e um decreto específico (de 14 de Dezembro de 1869) para que o director e os mestres da Escola passassem a ser civis.

Acompanhando o andar dos tempos, e o que estes foram trazendo em matéria de progresso do saber e das ciências, foram-se criando novas cadeiras, nomeadamente de Geometria Descritiva e de Química Orgânica, e reorganizado o programa de cursos, implementando-se alguns novos, como o de Engenheiros Hidrógrafos em 1862 e os de habilitação para o magistério secundário em 1902.

A implantação do regime republicano alterou profundamente a natureza e a organização do ensino superior, desde logo com a promulgação das Bases da Nova Constituição Universitária em 19 de Abril de 1911. As reformas aconteceram a um ritmo
avassalador, reagindo à urgência que a necessidade da mudança conferia. A 23 de Março foram criadas as universidades de Lisboa e do Porto, pondo termo à exclusividade da Universidade de Coimbra; na mesma data instituiu-se um fundo universitário, em Lisboa, Porto e Coimbra, de bolsas ou pensões de estudo, destinado a subsidiar os estudantes de menores recursos; a 12 de Abril procedeu-se à reforma do Instituto de Agronomia e Veterinária que passou a denominar-se Instituto Superior de Agronomia, formando engenheiros agrónomos e silvicultores; no mês seguinte, a 23 de Maio, foi criado o Instituto Superior Técnico procedendo à divisão do Instituto Industrial e Comercial de Lisboa em duas escolas autónomas, o Instituto Superior do Comércio e o Instituto Superior Técnico e, dois dias mais tarde, foi extinto o curso de engenharia civil da Escola do Exército.

Quanto à Politécnica, com a criação das novas Universidades, passou a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, cumprindo o Plano Geral de Estudos das Faculdades de Ciências publicado em 12 de Maio do mesmo ano de 1911.

Em 1937, por ocasião do primeiro centenário da Escola Politécnica de Lisboa, a Faculdade de Ciências empenhou-se na celebração do acontecimento, promovendo várias iniciativas, entre as quais pontua a publicação do primeiro número da Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa onde, precisamente, ficou escrita a memória dessas comemorações. Surge, justamente, o elogio da instituição que, afinal de contas, marcara a actividade científica e pedagógica do País dos últimos 100 anos. Aí se formaram milhares e milhares de estudantes (…) entre eles o Presidente da República e o ministro do Comércio e Indústria [Óscar Carmona e Pedro Teotónio Pereira, respectivamente]. Na Escola estudaram os que formam a maioria nos quadros do Exército e da Marinha de Guerra; nela se habilitaram também muitos dos engenheiros que ocupam as situações de maior responsabilidade no desenvolvimento da riqueza pública. Frequentaram-na numerosos alunos que hoje são professores e no País promovem a educação nacional e por lá tiveram passagem, embora curta, quasi todos os médicos de Lisboa1.

As celebrações decorreram nos dias 11 e 12 de Janeiro, incluindo homenagens junto aos túmulos do marquês de Sá da Bandeira e do historiador Alexandre Herculano. E recordaram-se nomes famosos, de lentes e de alunos… Felipe Folque, António Augusto de Aguiar, Andrade Corvo, Latino Coelho… entre tantos, tantos outros… O centenário justificava o elogio e o reconhecimento da contribuição da Escola Politécnica / Faculdade de Ciências para o progresso científico e material do País. Na verdade, dizia então o director da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o gabinete de Física, o Museu de História Natural, o Laboratório de Química, o Observatório Astronómico, o Jardim Botânico foram instrumentos admiráveis de um experimentalismo científico, que contribuiu em altíssima medida para o desenvolvimento da economia da metrópole das colónias2.

É ainda esse património que cumpre conservar e recuperar; não basta, porém, esgrimir pela sua preservação sem cumprir o fim
mais nobre que respeita à divulgação e promoção da herança material e de saber que contém e que contempla. É, portanto, indispensável pugnar pelo conhecimento e difusão dessa cultura científica de base histórica, indispensável ao reconhecimento da importância do legado actualmente reservado nos Museus da Politécnica, que cumpre conhecer e dar a conhecer às comunidades nacional e internacional que lhe dá sentido e para as quais existe.

1 Discurso do Director da Faculdade de Ciências de Lisboa, Professor Doutor Victor Hugo Duarte Lemos, Escola Politécnica de Lisboa. A Comemoração do 1.º Centenário, Faculdade de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1937, p. 10.
2 Discurso do Director da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Professor Doutor João da Silva Correia, Escola Politécnica de Lisboa. A Comemoração do 1.º Centenário, Faculdade de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1937, p. 40.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 104 - Março/Abril de 2008

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