fechar
Acessibilidade (0)
A A A

Escolha o idioma

pt
5898a80e56233bb2a3e7d468b7e5cd1e.jpg

No 70.º Aniversário da Ordem dos Engenheiros

No ano em que a Ordem dos Engenheiros (OE) celebra o seu 70.º aniversário, não podia deixar de me sentir intimamente associada ao evento. Primeiro, porque não me esqueço do papel importante que os engenheiros desempenham nas sociedades modernas e, designadamente, na portuguesa; segundo, porque há muito que os engenheiros são objecto do meu estudo como historiadora; finalmente, porque a actual direcção da OE me convidou para escrever uma História da Ordem dos Engenheiros, o que muito me orgulha.

Claro que escrever esta obra representa um grande desafio, que gostosamente assumo, sublinhando, desde já, a importância e significado de que a iniciativa se reveste: quer pelo ineditismo do acto, quer pelo que significa em termos de tentativa de fixar para o futuro o trajecto feito pela instituição que, só por si, constitui um património histórico assinalável, na medida em que constitui uma peça fundamental para o conhecimento da história do nosso País.

E gostaria de começar exactamente por este ponto: louvar, de forma reconhecida, a iniciativa da Ordem dos Engenheiros, na medida em que reflecte uma atitude e um empenho que nem sempre estão presentes no quadro das preocupações de muitas instituições – públicas e privadas – que, com passados mais ou menos longos e ricos, que tendo tido uma presença
importante no contexto da nossa história, são herdeiras e proprietárias de espólios relevantes para o seu conhecimento.
Defendo, por isso, a preservação e a divulgação dessa história que, afinal, nos pertence a todos. Indo mais longe: quando se está perante uma instituição tão relevante e simbólica, no quadro do conhecimento e da compreensão da realidade económica, social, técnica que ajudou a tecer e compõe iniludivelmente a contemporaneidade portuguesa, é uma obrigação e uma responsabilidade que deve ser assumida com consciência e empenho. Nesse sentido, creio não ser demais o apelo atento e responsável à consciência da indispensabilidade do conhecimento do passado para melhor viver o presente e pensar e construir o futuro.

Falemos, então, do futuro, ou melhor, da eterna dialéctica que se estabelece entre o passado e o futuro: deste que estamos a construir e que queremos assente em bases sólidas, científicas, mas que beneficia de um passado de pensamento, de estudo e de experiência que a engenharia portuguesa tem sabido construir dentro e fora do País.
Embora a minha posição a este respeito possa ser considerada suspeita, a verdade é que tenho cada vez mais a consciência da necessidade de conhecermos e compreendermos o nosso passado para vencermos os complexos desafios que a sociedade em que vivemos nos coloca, por vezes até de forma violenta. Claro que esta consciência faz pesar o nosso sentimento de responsabilidade. Penso, porém, que o tom geral se deve pautar por um sentimento responsável de optimismo.Por tudo isto, lançar mãos desta tarefa, não sendo fácil, é um desafio estimulante e, creio, muito necessário.

De resto, fazer esta História, sendo um desafio difícil, constitui, simultaneamente, uma oportunidade de aprendizagem e de reflexão sobre nós, sobre o País, sobre um percurso feito de avanços e recuos, hesitações e ausências, mas um percurso que tem sido, acima de tudo, o traçado de um rumo de crescimento, entendido num sentido pleno, repercutindo-se em desenvolvimento económico e social e em qualidade de vida.

Em todos estes aspectos é constante a presença da engenharia:

  • na criação de um pensamento, feito de conhecimento teórico e de saber fazer;
  • na preparação, na definição e na construção de caminhos, para o futuro;
  • na percepção de que o saber, o conhecimento é feito de conquistas, que se somam, que se tornam cumulativas – e que é desse saber acumulado, dessa cultura, afinal assente em bases sólidas, científicas, que depende o nosso lugar no futuro.
Assim tenha eu, e a equipa que participa neste empreendimento, a capacidade e o engenho para levar a bom termo essa História, com a qualidade indispensável – já que o rigor e o empenho certamente não faltarão.

Como é sabido, não sou engenheira, sou historiadora e, portanto, o meu olhar para a História da Ordem dos Engenheiros, ou seja, para o papel, a função, o lugar que os engenheiros, como grupo social, como corpo profissional, têm tido ao longo da nossa história, é naturalmente diferente daqueles que me estão a ler, porque moldado pelo conhecimento, metodologias e perspectivas científicas, que fazem parte da profissão que tenho. É com esse entendimento que vejo, que penso e que concebo a História da OE. Acresce que, para mim, fazer esta História se inscreve num percurso mais vasto em termos de investigação.

Um percurso partilhado, caminho que também beneficia de estudos feitos por companheiros, alguns colegas de profissão, outros parceiros sobretudo da vontade de conhecer e compreender o nosso passado e da intenção de colaborar na construção do futuro. Por isso, não posso deixar de referir trabalhos e projectos passados nestes domínios da história, da história económica, da história da engenharia e da própria história dos engenheiros. Entre todos, recordo, nesta circunstância, um dos mais recentes e marcantes, um projecto de natureza pluridisciplinar, em cuja coordenação tive o prazer de participar (com um economista/meio historiador e um engenheiro, respectivamente J. M. Brandão de Brito e Manuel Heitor), e que aconteceu sob a consigna de “Engenho e Obra”. No fundo, traduziu-se na produção de uma grande história da engenharia em Portugal no século XX” que, como muitos estarão lembrados, se desdobrou por uma grande exposição e pela edição de duas obras de referência1, quer para a historiografia contemporânea portuguesa, quer para essa história da engenharia que se fez em Portugal no século XX.

Para mim – então, como agora – o principal desafio tem residido em estudar, procurar entender e avaliar em que medida as sucessivas conjunturas históricas que marcaram a contemporaneidade portuguesa – compreendendo o tempo histórico que decorre desde a Revolução Industrial –, tendo em conta os seus principais contornos políticos e os seus enunciados e opções essenciais de desenvolvimento económico, determinaram – inibindo ou estimulando – ou foram determinadas pelo percurso da engenharia em Portugal, em termos gerais e, particularmente, através do papel desempenhado pelos engenheiros.

Ou seja, compreendo que a História da Ordem, tendo em consideração a sua importância institucional específica e a dos engenheiros – individual e colectivamente – e da engenharia que sabem e fazem, tem uma dimensão que transcende a sua própria realidade institucional e organizacional.

Nesse sentido, salvaguardados os indispensáveis distanciamentos, a História da Ordem dos Engenheiros espelha, repercute e também influencia o que tem sido a história do País que hoje somos. É, portanto, necessário conhecer, compreender, contextualizar a História da Ordem na história desse País.
É importante perceber a sua origem, a sua organização, o seu percurso, as suas idiossincrasias, as conquistas que tem vindo a fazer como associação profissional desde meados do século XIX. Afinal, como tem representado e defendido os engenheiros; como tem, ela própria como instituição, ultrapassado muitas conjunturas históricas de natureza variada, feitas de contingências por vezes difíceis de superar, que a têm posto à prova no que se refere à sua natureza e até em termos da sua própria sobrevivência.

Naturalmente, em relação ao que tem sido a história da engenharia em Portugal, não me parece que haja dúvidas acerca da importância de que se reveste conhecer o que se fez no nosso País, envolvendo projectos e obras notáveis, com expressão e reconhecimento domésticos e internacionais, tal como me parece da mais elementar evidência ser necessário compreender porque é que em muitos casos não foi possível ir mais longe, e qual foi o papel da Ordem e dos engenheiros nesses contextos.

Quanto à iniciativa em si mesma, da sua relevância num quadro mais global, uma palavra para referir a questão do património histórico que lhe está associado. Património aqui tomado em todos os sentidos e acepções: documental, científico, tecnológico, iconográfico, bibliográfico.

A verdade é que, não sendo possível fazer história sem fontes, não podemos salvaguardar o nosso passado e defender o futuro ignorando, ‘desprezando’, destruindo o seu passado físico. Por isso, aqui fica o apelo: que esta História da OE seja também o prosseguimento da salvaguarda e da preservação do património de que a Ordem tem vindo a ser depositária ao longo de muitas gerações de engenheiros.

Em certa medida, a OE é hoje uma sobrevivente da história, e foi, de resto, para honrar esse passado e para enfrentar o futuro que os engenheiros, nesses longínquos tempos do século XIX, se começaram a organizar no sentido de criarem uma associação profissional de que a Ordem é herdeira. Mas deixando essa história mais distante, quero agora referir apenas duas ideias que me parecem essenciais recordar neste 70.º aniversário: primeira, que a iniciativa da criação da Ordem dos Engenheiros decorre de uma ambição que vai crescendo e afirmando no seio da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses a partir do final da I Guerra Mundial e que ganha particular expressão na segunda metade dos anos 20:
  • intenção que anda a par com a necessidade da clarificação do uso do título de engenheiro, da regulamentação do exercício da profissão, da indispensabilidade de assumpção, por parte da associação profissional dos engenheiros, de uma acção efectiva em termos disciplinares;
  • e o facto desse desígnio se vir a concretizar, num contexto sócio-político radicalmente diferente, em plena vigência do Estado Novo, sendo, por esse motivo, integrada na ordem corporativa; segunda, para afirmar em que medida essa intenção, e o ambiente em que veioa concretizar-se, decorre da inexorabilidade dos tempos, olhados quer no quadro nacional, quer em termos internacionais – e de que os engenheiros têm boa percepção. Na prática, a Ordem é também a expressão do importante papel que os engenheiros foram assumindo como corpo profissional e da sua função social, económica, política numa sociedade que se encontrava num período de transição, que se revelou mais longo do que à partida seria de prever, e num tempo de enormes transformações.
E é neste sentido que, num tempo marcado pela ascensão e pela importância crescente do papel dos engenheiros na sociedade, que a criação da Ordem do Engenheiros se apresenta
como algo que decorria da naturalidade das coisas e assentava em importantes argumentos:
  • a necessidade de proceder ao reconhecimento da engenharia como uma actividade essencial ao progresso do País;
  • e a indispensabilidade de tornar efectiva a consagração do estatuto social dos engenheiros como profissionais altamente qualificados no contexto económico, social e político da época.
Na verdade, era cada vez mais visível a importância que os engenheiros vinham assumindo nas mais diversas áreas da realidade portuguesa: demonstrando uma forte vontade de afirmação como classe, procurando activamente uma identidade e fazendo uma defesa acérrima de um espaço próprio de intervenção;
  • reivindicando uma crescente intervenção na esfera política e uma participação na definição e condução das políticas de desenvolvimento
  • do País;
  • tornando a sua presença decisiva um pouco por todo o lado – nomeadamente nos meios empresariais;
  • provando a sua indispensabilidade como agentes da inovação tecnológica necessária ao desenvolvimento.
Quer isto dizer que, conjunta ou separadamente, todos estes aspectos se foram conjugando e adaptando ao evoluir dos tempos, marcando o papel do engenheiro na sociedade e defendendo uma identidade profissional específica. Assim, como tenho tentado exprimir, foi crescendo a aspiração de criar uma Ordem Profissional, prosseguindo objectivos e atendendo a um conjunto de pontos que, para finalizar, enumero sem preocupações de exaustividade:
  • o ensino da engenharia encarado, progressivamente, como uma estratégia de desenvolvimento (particularmente visível no IST e na FEUP);
  • a participação em todas as esferas de decisão, incluindo a definição e a concretização das políticas económicas;
  • a definição de uma estratégia de penetração e de afirmação pública como classe profissional organizada.

1 Engenho e Obra. Uma Abordagem à História da Engenharia em Portugal no Século XX, Coord. J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002 e Momentos da Inovação e Engenharia em Portugal no Século XX, 3 vols., coord. de J. M. Brandão de Brito, Manuel Heitor e Maria Fernanda Rollo, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004.

Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 94 - Julho/Agosto de 2006

Parceiros Institucionais