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Um novo Plano Marshall?!


General George Catlett Marshall,
Secretário de Estado dos EUA

O Plano Marshall, mesmo que mal conhecido, especialmente em Portugal, onde durante muito tempo passou despercebido e até se quis crer nem ter sido utilizado, transformou-se num mito que tem sido periodicamente revisitado. O sucesso internacionalmente alcançado e reconhecido, transformaram-no no arquétipo dos programas de ajuda ao exterior, aproximando-o, até, da última, mas miraculosa, solução, para, rompendo os impasses, as dúvidas, as incertezas… sobrepondo- se a nacionalismos, proteccionismos, e outros "ismos", superar a hecatombe anunciada e, de uma vez por todas, resolver a crise, recuperar a(s) economia(s), em sede nacional e internacional, lançar a renovação, promovendo, ainda, um caminho de regeneração.

Reavivando memórias, o Plano Marshall teve a sua origem no discurso pronunciado por George Marshall, Secretário de Estado dos EUA, em 5 de Junho de 1947 na Universidade de Harvard. O discurso tornava pública a intenção norte-americana de apoiar os países europeus depauperados pela II Guerra Mundial na sua obra de recuperação económica. A proposta contida no discurso acabou por só ser aceite pelos países da Europa Ocidental que reconheceram nela a via preferível para a sua "recuperação" económica. Deu-se corpo à realização de um vasto e complexo programa que, com uma duração prevista de quatro anos, viria a estimular os países participantes a romper o impasse económico em que se encontravam, e a auxiliar o cumprimento do processo de reconstrução e de recuperação das suas economias.

Simultaneamente, e como consequência de uma condição previamente imposta pelos norte-americanos, os países europeus teriam de aceitar gerir o programa de ajuda, solidariamente entre si e em conjunto com os EUA.Essa solidariedade "imposta" conduziu à criação, em 16 de Abril de 1948, da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), no seio da qual se aprofundaram os debates,se concertaram as primeiras medidas e se consagrou a ajuda americana entretanto aprovada pelo Congresso dos EUA. Ao longo dos quatro anos em que vigorou o ERP, os EUA canalizaram para a Europa cerca de 13 mil milhões de dólares, representando anualmente cerca de 1,2% do total do Produto Nacional Bruto americano entre 1948 e 1951.

São, desde então, inúmeras as vezes em que, perante uma crise mais acentuada ou uma convulsão económica ou social mais profunda, alguém… algures… reclama pôr em marcha algo que se lhe assemelhe. "Não seria de lançar um novo Plano Marshall?" Assim mesmo já se ouviu nos últimos meses…

A recorrência da evocação levou a que, já em 1991, em contexto histórico facilmente identificável, a Library of Congress1 preparasse um documento para o Congresso Americano explicando o carácter excepcional de que o Plano Marshall se revestiu em 1947, as circunstâncias não menos excepcionais em que se concretizou e, fundamentalmente, o seu carácter datado e irrepetível; até porque, constituindo os EUA o único país que poderia dispor, teoricamente, da capacidade para propor, nesse final de século, um novo plano de recuperação, então à escala mundial, essa possibilidade estaria à partida inviabilizada por virtude da crise de então e das próprias circunstâncias em que outrora e agora os próprios EUA se encontram enredados.

Percebem-se, na actualidade, por um lado, outras entidades, agora obviamente internacionais (embora à época do Plano Marshall algumas já existissem, designadamente o FMI), que podem/têm por missão ou podem/devem assumir essa vocação de "resgate" – mas não seria Plano Marshall, pois é preciso conhecê-lo para perceber como é mesmo indissociável da sua origem, "made in USA" – evoque-se por isso, mesmo mais prosaicamente, a necessidade de encontrar uma solução, um programa, um caminho de regeneração… que evidentemente passa por concertações e entendimentos de solidariedade e responsabilidade; por outro lado, emergem outros e novos (ou renovados) argumentos, criando até um cenário algo difuso sobre a natureza, as causas, as razões, os mecanismos de contágio e dispersão que a actual crise contém… Sobre tudo isso, a História é também longa e complexa… e a sua identificação e compreensão necessárias.

Uma coisa, porém, é certa: o enquadramento histórico, resumindo a combinação de variáveis múltiplas, que distingue um tempo certo, a confluência de vontades ou a falta dela, as ambições e os projectos políticos e económicos, são, com certeza e como bem se percebe, distintos. E é isso, que, entre tantas outras coisas, mas desde logo, sublinha a indispensabilidade da percepção do quadro histórico, que, num determinado momento, e, diga-se, que no respeitante ao Plano Marshall, foi muito efémero, suscitou ou permitiu o lançamento, a aplicação e a aceitação da ajuda americana aos países europeus. Mas, enfim…retomando as justificações dos tempos do fim da Guerra Fria, e o relatório então preparado, refira-se a chamada para o facto de que uma verba, a preços actuais, semelhante à que os EUA despenderam com o Plano Marshall, ultrapassaria em vários milhares de milhões de dólares o montante da assistência financeira, económica, alimentar e militar que os EUA dispensavam, em 1991, a 80 países e a numerosas instituições internacionais espalhados por todo o Mundo.2

Em suma, o Plano Marshall, no reconhecimento da iniciativa, dos seus resultados e dos seus efeitos, embora assumindo por vezes foros de lenda ou o mito a que acima se fez referência, tem persistido na memória individual e colectiva das sociedades contemporâneas, e é considerado um modelo dos programas de ajuda para fazer face a situações de crise ou caos económico.

Para que faça sentido o pressuposto ou a intenção de o retomar, ou, se se quiser, em patamar mais amplo, fazendo ecoar a cultura do passado na construção do presente, é indispensável submeter o Plano Marshall a uma leitura histórica, estudando as circunstâncias em que foi proposto ao Mundo e as características que o tornam um acontecimento específico. Será sobretudo necessário e útil perceber em que medida, em que moldes, e até com que custos e cedências (porventura hoje inaceitáveis), o seu sucesso, a par do enquadramento histórico, dependeu essencialmente da disponibilidade e do empenho conjunto, cúmplice e concertado em alcançar uma solução solidária e internacionalmente procurada, comprometendo e  responsabilizando as autoridades políticas ao nível nacional e internacional e também a sociedade civil (em particular as elites universitárias e económicas) definindo (por imposição dos EUA e na constatação do falhanço das soluções tentadas individualmente, é certo) um programa/trajecto comum, partilhando recursos (humanos e materiais) e garantindo a aplicação de mecanismos eficazes de concretização e controlo.

Foi, sobretudo por isso, que, em contexto de escassez e, sem dúvida, entre receios (incluindo a "ingerência" americana) e incertezas, apesar de tudo o Plano Marshall foi bem sucedido no auxílio aos países europeus que, a braços com uma crise internacional, inédita em manifestação e impacto, acabariam por encontrar mecanismos de recuperação, inscrevendo formas múltiplas de cooperação, e encetar um período longo, relativamente estável e generalizado, de crescimento económico e desenvolvimento social e cultural que caracterizou o terceiro quartel do século XX, valendo-lhe o título de "período dourado" ou "anos de ouro" do crescimento económico.

Os estudos e trabalhos dedicados à apreciação das razões que conduziram e explicam o período excepcionalmente longo de crescimento económico generalizado que caracterizou os "trinta gloriosos" é de uma enorme riqueza e diversidade, compreendendo, é claro, entre as várias questões debatidas no quadro de alguns desses estudos, a avaliação do impacto económico que o Plano Marshall poderá ter tido no arranque desse ciclo. As opiniões de economistas e historiadores económicos estão longe de ser unânimes, mesmo em termos de apreciação geral. Entre os que, ocupando posições mais "radicais" defendem que os efeitos económicos do Plano Marshall tiveram um impacto significativo na recuperação económica dos países europeus a seguir à II Guerra Mundial, e os que defendem que o plano americano não foi essencial a esse processo de recuperação da Europa, as interpretações e a gradação dos efeitos económicos do auxílio americano são bastante diversos3.

Embora seja ainda necessário explorar mais significativamente o terreno das comparações internacionais, parece confirmar-se a ideia defendida por Eichengreen e Uzan que não existe uma correlação óbvia entre os países, a dimensão dos auxílios do Plano Marshall e o ritmo do respectivo crescimento económico4.

Claro que, para além da avaliação do impacto em termos de crescimento económico global, e concretamente para a recuperação da Europa no pós-guerra, os efeitos do Plano Marshall têm sido objecto de uma extensa bibliografia dedicada aos mais diversos aspectos que o programa americano envolveu, quer em termos globais, quer relativamente aos diferentes casos nacionais. É nesse território, e a partir desses estudos, que se tem também alargado o escopo da análise e a compreensão do impacto do Plano Marshall, sobretudo no que respeita aos efeitos das múltiplas ramificações decorrentes do programa americano, especialmente em domínios como promoção da internacionalização da investigação e do conhecimento, estudos e projectos de estímulo à melhoria dos métodos de produção e níveis de produtividade, tendo inclusivamente envolvido a criação de centros de produtividade em praticamente todos os países da Europa Ocidental, e a adopção dos modelos, técnicas e estratégias empresariais americanas.

Para finalizar, e nesta oportunidade, refira-se a persistência de duas características-matriz que o dotam de uma originalidade nem sempre sublinhada, marcaram a concepção e se prolongaram em termos de execução do Plano Marshall, tendo até constituído herança; características que lhe conferem modernidade e actualidade, e, de certa forma, podem tornar pertinente a sua evocação, sem perder de vista a complexidade e dimensão das circunstâncias, únicas, dos meios, vastos, e da concertação de vontades/interesses, "ocasionais", que garantiram o seu sucesso entre o final da II Guerra Mundial e a emergência da Guerra Fria: (i) o facto de se projectar no tempo como um programa concebido, assumido e concretizado conjuntamente a partir dos recursos identificados e partilhados entre países, pressupondo para a sua concretização da responsabilidade dos governos articulada com organizações específicas em termos nacionais e internacionais e (ii) adoptando uma visão estratégica, abrangendo diversos planos, desenhada a médio prazo, mas perspectivada, a partir do pressuposto da criação de meios e condições de formação e organização científica e técnica, para promover a recuperação sustentada e o desenvolvimento económico e social a longo prazo.

1 TARNOFF, Curt, The Marshall Plan: Design, Accomplishments, and Relevance to the Present, CRS Report for Congress, Congressional Research Service, The Library of Congress, January 2, 1991.
2 Idem, p. 29.
3 As contribuições recentes mais estimulantes para este debate, incluindo as que defendem teses fundamentadas a partir do recurso a métodos de natureza mais quantitativa, pertencem a Alan Milward, Nicholas Crafts, Immanuel Wexler e Barry Eichengreen. Ver também sobre esta questão o livro editado po Martin A. Schain, The Marshall Plan: Fifty Years After, Europe in Transition: the NYU European Studies Series, Palgrave, 2001.
4 Barry Eichengreen e Marc Uzan, "The Marshall Plan: economic effects and implications for Eastern Europe and the former USRR”, in Economic Policy – A European Forum, n.º 14, April 1992, Cambridge University Press, pp. 14-75.

Maria Fernanda Rollo
Instituto de História Contemporânea e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Publicado na Revista Ingenium N.º 124 - Julho/Agosto de 2011


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