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“País sem siderurgia, não é um país, é uma horta”

Memória da introdução da indústria siderúrgica em Portugal1


24de Agosto de 1961: inauguração oficial das instalações do Seixal da Siderurgia Nacional.

Velha de quase um século, mas nunca adormecida, a questão da implantação de uma indústria siderúrgica em Portugal encontrava, por fim, o seu epílogo. Incansável na cruzada que há tanto tempo encabeçava, Ferreira Dias, ministro da Economia, podia finalmente proferir com redobrado orgulho a afirmação exaustivamente recordada: “País sem siderurgia, não é um país, é uma horta”2.

A verdade é que foi em meados do século XIX, estando as principais nações industriais dotadas de modernos complexos siderúrgicos, que se esboçaram as primeiras propostas de instalação de uma moderna indústria do ferro em Portugal. No contexto da Revolução Industrial, o papel do ferro e a importância da siderurgia eram exaltados como indispensáveis à sobrevivência de uma nação na nova era industrial.

Durante um século fizeram-se propostas, apresentaram-se projectos, equacionaram-se soluções, confrontaram-se ideias, avaliaram-se recursos, tudo para que pudesse existir uma indústria siderúrgica nacional. Os pressupostos e as conjunturas alteraram-se, mas a vontade de ver Portugal dotado de uma siderurgia perdurou.

Acerca dela teceram-se os elogios mais sérios, criaram-se as maiores expectativas, projectaram-se os melhores cenários para o desenvolvimento industrial português. Cometeu-se-lhe mesmo a responsabilidade de desempenhar funções de motor de um crescimento industrial que permitiria recuperar atrasos e construir um País industrializado e economicamente desenvolvido.

A sua necessidade era o mais das vezes apresentada como um dado insofismável, até porque era encarada como “fonte de riqueza e de prosperidade pública” e símbolo de modernidade e desenvolvimento de que um “país civilizado” se teria inevitavelmente de dotar. Por isso, em seu favor, foram carreados argumentos que não diferiram muito entre si ao longo dos anos: dinamizaria o aproveitamento dos recursos naturais, aumentaria o consumo do ferro nacional, teria efeitos multiplicadores para as demais indústrias, em suma, promoveria o desenvolvimento industrial do País. Além do mais, teria efeitos positivos na redução do ágio do ouro e na diminuição da dependência externa do País.

De qualquer forma, eram enormes os escolhos a vencer e as dificuldades a ultrapassar: a exigência de um avultado investimento aumentava o risco do empreendimento e inibia uma tomada de posição pela tradicionalmente tímida iniciativa privada; as hesitações dos poderes públicos em ponderar a importância do empreendimento e, caso o entendesse, na definição do apoio que lhe poderia prestar; as resistências por parte da maioria para quem o curso económico do País não passava pela siderurgia nem tão pouco pela industrialização; a dimensão do País e o estado do seu desenvolvimento económico, onde avultavam a exiguidade do mercado interno, a escassez ou deficiência dos meios de transporte e a insuficiência energética; as dúvidas sobre a existência em quantidade e qualidade de matérias-primas e a sua deficiente avaliação; os poderosos interesses dos importadores; as improbabilidades de conseguir uma produção capaz de abastecer o mercado interno e que, simultaneamente, fosse competitiva em termos internacionais. Para culminar, a instabilidade política que cobriu grande parte do período associada à ausência ou falta de clareza no que respeita à adopção de uma política económica de enquadramento e, especialmente, a assunção do papel do Estado na aceitação e promoção da industrialização do País.

Porém, não faltaram aqueles que tentaram argumentar contra essa situação, pelo menos na teoria, sugerindo a promoção da siderurgia e da industrialização – quanto mais não fosse, como no caso das propostas iniciais, para aproveitar as reservas nacionais em minérios e obviar à saída de riquezas do País.
Símbolo de modernidade, a indústria siderúrgica foi envolvida por uma espécie de auréola mística, que sugeria a transcendência da avaliação da sua viabilidade económica, tolhia o realismo da ponderação dos recursos necessários, quer em matérias-primas, quer em termos financeiros, e projectava resultados a maior parte das vezes irrealistas.

Por tudo isso, a indústria siderúrgica, cuja implantação tanto se reclamou, dada a importância que se lhe atribuiu, legitimava a intervenção do Estado; por um lado, a sua premência assim o ditava, por outro, honraria o País. Ou seja, não obstante as causas e os argumentos utilizados, existiu, desde sempre, a percepção de que a criação de um empreendimento dessa dimensão só seria possível se se contasse com o apoio público. A indústria do ferro era então encarada como devendo ser um assunto de Estado, deslizando sistematicamente para a noção de que, mais do que uma decisão de carácter técnico e económico, dependia e aguardava a decisão política. A sua criação, já nos meados do século XX, seria também o reflexo da auto-suficiência e da independência económica e política que se pretendia prosseguir.

Ao longo do tempo, foram percorridas diferentes conjunturas políticas em que nunca se perdeu, com maior ou menor razão, a vontade de “fazer ferro verdadeiro”, na expressão de Ezequiel de Campos3. Algumas circunstâncias estimularam a densificação da sua reclamação, tendo a ver com os contextos económicos e financeiros internacionais e o seu reflexo em Portugal. Refiram-se sobretudo as conjunturas associadas às duas guerras mundiais e às crises que enquadraram, ou aquelas que surgiram associadas a surtos industrializantes que pontuaram o País.

No entanto, só no segundo pós-guerra esses esforços acabaram por se concretizar. A história da implantação de uma indústria siderúrgica em Portugal reflecte naturalmente, na sua formulação e nos seus propósitos, a evolução da conjuntura política e da actividade económica portuguesa e, desempenhando um papel fundamental nas propostas e tentativas de industrialização da economia nacional, integra-se no debate que percorreu o período em torno dos princípios que deviam presidir ao desenvolvimento económico do País.

Ultrapassadas vicissitudes diversas, foi por fim constituída, em 23 de Dezembro de 1954, a Siderurgia Nacional, liderada por António Champalimaud, a quem o então ministro da economia, Ulisses Cortês, atribuiria o alvará em Fevereiro do ano seguinte4. Tudo previamente explicado na comunicação que o ministro fizera à Imprensa em Julho de 1954: “Dada a natureza especial da indústria do ferro e a necessidade de obter as condições óptimas de produção, tanto no aspecto técnico como económico, considerou-se também necessário evitar a dispersão desta actividade e criar uma única unidade industrial concessionária do respectivo alvará.“5

Ferreira Dias, embora não desempenhando funções de condução da política enquanto decorreu a atribulada história que faltava cumprir para que se criasse a siderurgia em Portugal, não ficou à margem de todo este processo. Como procurador à Câmara Corporativa (agregado às Secções de Finanças, Economia Geral, Política e Administrativa) teve uma participação decisiva no assunto, quer através do Parecer da Secção de Indústrias Metalúrgicas e Químicas6, quer através do Parecer Geral da Secção de Finanças, Economia Geral e Política, relativo ao projecto de Lei do I Plano de Fomento (1953-1958) de que foi relator7. Mais, foi Ferreira Dias quem, em 1954, redigiu o projecto de licença para o estabelecimento da indústria siderúrgica e ainda elaborou um parecer sobre a localização da mesma8.

Muitas atribulações ocorreram ainda em torno da montagem dessa indústria-base, até que, finalmente, em 1961, a Siderurgia Nacional entrou em actividade, constituindo um dos maiores empreendimentos industriais concretizados em Portugal.
Os dois engenheiros aqui recordados, Ferreira Dias e ainda Ezequiel de Campos, entre tantos, assistiam, por fim, à materialização do seu sonho.

Nessa altura, Ferreira Dias encontrava-se novamente no Governo, como ministro da Economia, desde 1958. Acabou por ser ele quem pronunciou o discurso mais sentido quando da inauguração oficial das instalações do Seixal da Siderurgia Nacional, em 24 de Agosto de 1961, e que, com justificado orgulho, proferiu tranquilamente a afirmação acima citada que “País sem siderurgia, não é um país, é uma horta”9. Ferreira Dias não descansa sem aconselhar a duplicação da capacidade da fábrica que se inaugurava – pouco importava quanto custasse... E, por fim, a comovente confissão: “os últimos 10 anos trouxeram-me alegrias profissionais que os primeiros 50 anos de vida me negaram, porque os passei, quanto a esse sector, numa apagada e vil tristeza (...). Mas depois que entrou a ordem na vida portuguesa e depois que os espíritos se afizeram à ideia de pensar nos factos económicos ligados à produção, tenho tido uma série numerosa de dias felizes, embora insuficientes para minha satisfação; mas nestes há 3 que sobrelevam os outros, porque neles se fizeram inaugurações de obras-tipo pelas quais lutei até ao último reduto da minha fé e que excitaram a minha imaginação desde o tempo longínquo de estudante: a central do Castelo do Bode, 1.ª obra da rede eléctrica primária, em 1951; a electrificação dos caminhos-de-ferro, em 1957; a siderurgia, em 1961.”10

1 Ver entre os trabalhos mais recentes dedicados à história da indústria siderúrgica e da Siderurgia Nacional, Paulo Guimarães, “Contribuição para a História da Siderurgia Nacional”, in Maria Fernanda Rollo (ed.), Memórias da Siderurgia. Contribuições para História da Indústria Siderúrgica em Portugal, História e CM do Seixal, 2005, p. 69-110; João Martins Pereira, Para a História da Indústria em Portugal, 1941-1965. Adubos azotados e siderurgia, Lisboa, 2005; Maria Fernanda Rollo, “Memórias da vontade: da implantação da indústria siderúrgica e do desenvolvimento industrial do País”, Memórias da Siderurgia. Contribuições para História da Indústria Siderúrgica em Portugal, História e CM do Seixal, 2005, p. 13-68.
2 Arquivo Ferreira Dias, Museu da Electricidade, J. N. Ferreira Dias Jr., “Discurso na inauguração da Siderurgia Nacional”, 24 de Agosto de 1961, p. 1.
3 Ezequiel de Campos, O Enquadramento Geo-Económico da População Portuguesa Através dos Séculos, 2.ª ed., 1943, p. 232.
4 Vd. “Despachos Ministeriais de 18 de Fevereiro de 1955. Siderurgia. Alvará n.º 13”, Boletim da Direcção Geral dos Serviços Industriais, Ano VII, n.º 322, de 2 de Março de 1955, pp. 125-126.
5 “Plano de Fomento. Instalação da Indústria Siderúrgica no País. Nota de imprensa do Gabinete do Ministro da Economia”, Boletim da Direcção-Geral dos Serviços Industriais, Ano VI, n.º 290, de 21 de Julho de 1954, pp. 403-406.
6 J. N. Ferreira Dias (Agregado), “Anexo IV – Parecer subsidiário da secção de Indústrias Metalúrgicas e Químicas” ao Parecer N.º 36/V – Plano de Fomento. Parte I, Pareceres da Câmara Corporativa, (V Legislatura), Ano de 1952, Vol. II, Assembleia Nacional, Lisboa, 1953, pp. 407-416.
7 José Nascimento Ferreira Dias Jr. (Relator), “Parecer N.º 36/V – Plano de Fomento. Parte I (Continente e Ilhas) (Projecto de proposta de lei n.º 519)”, Pareceres da Câmara Corporativa (V Legislatura), Ano de 1952, Vol. II, Assembleia Nacional, Lisboa, 1953, pp. 207-272, (Diário das Sessões n.º 168, 21 de Novembro de 1952).
8 O processo encontra-se vastamente documentado no Arquivo Ferreira Dias, Museu da Electricidade.
9 Arquivo Ferreira Dias, Museu da Electricidade, J. N. Ferreira Dias Jr., “Discurso na inauguração da Siderurgia Nacional”, 24 de Agosto de 1961, p. 1.
10 Idem, p. 5.


Maria Fernanda Rollo
Professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa


Publicado na Revista Ingenium N.º 100 - Julho/Agosto de 2007

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